Capítulo 11 - De volta à Catedral

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Despertei lentamente, como se não recordasse da luta com Azrrael. Minha cabeça latejava como se estivesse sendo perfurada por uma furadeira. Olhei ao meu redor, constatando que aquele não era o meu quarto e sim do Padre Jesuíno. Um lampejo fez as imagens da luta vir à tona. Tentei sentar, mas senti o corpo imobilizado. Tateei vagamente o abdome para identificar o que o envolvia; estava toda enfaixada.

Tiago dormia sentado na desconfortável cadeira de madeira com o tronco deitado no tampo da mesa. Com cautela, tentei sair da cama, mas fui pega no flagra por ele.

-Como está?                                    

Perguntou, enquanto esfregava o olho esquerdo. Provavelmente não notou minha ação.

-Como você está?

Interroguei de volta, ajeitando-me na cama.

-Espere um pouco! O médico aqui sou eu! Portanto, faço as perguntas! Protestou, me fazendo rir com dificuldade.

-Tudo bem, “doutor!”                             

Falei num tom de zombaria.

-Tive medo de perdê-la, ontem. Se não tivesse chegado a tempo, talvez você não estivesse viva agora.                                   

  Mantive-me em silêncio.

-Assim que saiu, aguardei um minuto e te segui.

-Então, por que só apareceu depois?

-Gabriel disse que eu só interferisse se visse que você não resistiria.

-E quase acabou morto também. Grande ajuda!                                             

 Retorqui sarcástica. Ele me encarou com seriedade.

-Você é uma garota muito orgulhosa e mal agradecida, sabia?

-A situação estava sob controle. Não precisava da sua ajuda.                                      

 Nervoso, ele levantou-se abruptamente.

-No lugar de me agradecer, fica soltando farpas?                                                         

Rebateu indignado.

-Muito obrigada, “doutor” Tiago!                 

Disse num tom de deboche. Ele me fitou por um instante, balançando a cabeça de um lado ao outro, em sinal de reprovação.

-Quando seu ataque de infantilidade passar, eu volto!                                                    Censurou-me, saindo sem querer ouvir a resposta.

Meu coração espremeu-se pelo pequeno desentendimento com Tiago. Ele tinha razão, eu estava sendo infantil. Não ajudou em nada agir daquela forma. Do contrário, consegui mantê-lo longe. O ligeiro pensamento de vê-lo se machucar por minha causa, me doía por dentro. Portanto, acreditei ter feito a coisa certa.

Batidas leves na porta fizeram com que me ajeitasse na cama.

-Julia?

-Padre Jesuíno! Por favor, entre.

 O saudei, com um meio sorriso.

-Como se sente minha filha?

-Bem melhor. Muito obrigada por me acolher, novamente.                                            Ele sentou na cadeira perto da cama.

-Não sei que fardo é este, que está encarregada. Mas, quero que saiba que, com base nas coisas que presenciei aqui, da última vez, se Deus a colocou nesta situação de guerreira da Luz é porque a tua capacidade vai além do que podes imaginar. Se realmente queres vencer, entrega-te por inteiro, como instrumento de vitória nas mãos do Senhor. Deixa Ele te guiar e na hora certa, saberás o que fazer.                                           

Dito isto, ele levantou-se, dando dois passos até a saída. Uma música sacra soava pelo corredor.

-Muito obrigada, Padre.                      

Externei, com gratidão.

-Se precisar de algo, estarei no salão da Igreja, com o coral. Estamos ensaiando para a apresentação sacral desta noite. Será aqui, mesmo! Se achar que tem condições de se locomover, venha assistir. Vivificará a tua alma.                             Em seguida, saiu.

Olhei a hora em seu relógio de parede. Apontava uma e meia da tarde. Meu corpo, ainda muito dolorido, impediu que eu saísse da cama, portanto, aproveitei para descansar ao máximo. O som abafado do coro da igreja serviu como uma "cantiga de ninar", ajudando o sono me encontrar mais rápido.

O caminho que segui na noite anterior era, sem dúvida, o que me levaria ao Círculo de Efraim. Do contrário, Azrrael não teria me distraído.

O Recife Antigo era um dos lugares que eu transitava, moderadamente. Dancei em boates com Jeny e bebemos em alguns barzinhos de ambiente familiar. No Carnaval, assistimos a “Noite dos Tambores Silenciosos”. No momento em que as alfaias começaram a vibrar, os pelos de meus braços se eriçaram, e uma pontada de orgulho me invadiu, por fazer parte desta cultura rica e contemplativa. Fiquei tão fascinada com o culto africano, que repeti a dose no ano seguinte. Já fui ver Alceu Valença, Irah Caldeira, Elba Ramalho, entre outros artistas regionais maravilhosos, no Marco Zero. Assisti o magnífico nascer do sol, que surgia em meio ao incomparável Parque das Esculturas de Brennand. Foram experiências inesquecíveis, as quais demônio nenhum irá apagar.

-“Onde o vento sopra a rosa cravada, no chão.”                                                

Essa frase me despertou.

-Mas é claro!                                           

Mirei o relógio e já passavam das oito da noite, daquela sexta-feira. Com cautela, saí da cama, pois o corpo ainda reclamava do efeito que o confronto exerceu sobre ele. Vasculhei nas gavetas da cômoda, encontrando caneta e papel. Escrevi as seguintes palavras:                                                

“Padre, finalmente descobri onde será o desfecho da minha missão. Desde já lhe agradeço por todo apoio, pedindo-lhe sua bênção e preces. Pegarei a sua capa de chuva emprestada, pois    minhas roupas estão um farrapo.

Ass: Julia Valença.

OBS: Caso Tiago retorne, diga-o que ficarei bem.

  Deixei o bilhete em cima da cama, peguei a capa e meus armamentos. O coral clamava com fervor e pela hora, aquele deveria ser o último número.

Tive que passar em casa, para trocar a roupa rasgada e manchada de sangue. Ainda me sentia debilitada, mas não queria adiar mais o fim.

-Dessa vez, acabo com você, Azrrael!

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