Dizer adeus ou a Deus?

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Era mais um dia de aula e Bruna estava de saída. A diretoria tinha recebido um telefonema em relação ao estado da irmã da aluna, a qual todo o corpo docente, e claro os alunos, estavam ciente. O recado foi claro: "não falar nada a garotinha que carregava um sorrisinho tristonho, só libera-la e diga: Deus é fiel!"

João cuidava de informar a todos amigos e parentes sobre o ocorrido, Márcia se trancava no banheiro, e já fazia horas. Estava na sala de espera do hospital, encarando os ponteiros do relógio.

"Sinto me bem madura pra obter as informações do óbito, resmungava."

Márcia, sabendo da presença de Bruna no hospital se retirou do banheiro e foi em sua direção. Abraçando-a o mais forte que conseguia, disse:

— Antes de tudo, Deus é fiel! A Ouviu falar, recebendo apos um beijo na testa.

"Não esta tudo perdido!"

Junto ao choro da criança que soluçava sem parar, a fé de tal se acendia vagarosamente, conforme o compasso da audição que catava as informações, Bruna levantou seus olhos cheios de gotículas minusculas de lágrimas e com um sorriso de curinga, que logo foi despencando ao escutar pacientemente o que Márcia tinha para falar.

— Ela tentou, lutou como uma guerreira, mas depois da cirurgia ela não resistiu. Sussurrou a sua filha. — Essa foi a unica alternativa, Bianca já estava cansada de sofrer Brum, tive que escolher.

"O que?" Olhos esbugalhados tomaram conta da fase de Bruna, "como assim?"

— Não foi por isso que Deus deixou de ser fiel, Ele sabe o que...

— Para! Gritou Bruna. Todos se viraram para ela: um idoso com uma bengala na mão, que tinha uma trilha de cabelos formando uma ilha na careca, uma senhora com um vestido azul marinho folheando "O Globo", uma enfermeira ruiva que dialogava com uma adolescente loira de olhos castanhos, um garoto de piercing  que apoiando seu pé na parede curtia seu funk no ultimo volume, mascando seu chiclete, e sua mãe paralisada. De fato não sabia qual seria a reação de sua filha, no entanto, jamais imaginaria isso. Segurou o choro até aquele momento, mas agora... a expressão de espanto de Bruna a assustava.

"Não posso desmoronar agora. Fácil não estar sendo, a tristeza roubando a esperança e o coração cansado de esperar, o milagre acontecer (ou o milagre que deveria ter acontecido)."

Observando-a a via espremendo os olhos com suas mãos, enxugando a represa que se abria, podia sentir a amargura que a invadia. Colocando um braço nas costas da sua menina, e afagando seu peito, não diria nada "o que dizer quando por fora se está sorrindo, lutando, mas por dentro estar chorando?"

— DEUS! Ele é o culpado disso? Parou, pensou no que falou, não se arrependia e não queria ouvir nada, e nada a faria acreditar que a sua irmãzinha não estava mais no mesmo mundo que ela.

— Bruna não diga isso, por favor, faça isso por mim?

Nenhuma resposta de Bruna.

As lágrimas que segurava libertaram-se, ganhando com as palavras de Bruna uma alforria. Percebendo que não podia mais se controlar se retirou da sala.

— Você é a "Bum?" disse a enfermeira, ruiva, esperando a hora certa para não assustar a garota.

Nem sinal de Bruna.

— Acho que sim não é? Bem... A Bia falava muito sobre você, e... Ela pediu para entregar esse urso. Dando continuidade com um sorriso amarelo, disse em um baixo volume. — Ela nunca largava.

Bruna esticou as mãos, sentou-se no sofá branco, e apertava contra seu peito o ursinho azul que dera de aniversário a sua irmã, enquanto Márcia entrava na sala.

— Quer da uma olhadinha nela?

Segurando as mãos de sua mãe, levantou-se.

— Vamos para a casa mamãe.

O funeral foi marcado para às oitos horas da manhã seguinte, Bruna dormiu ansiosa para a despedida da caçula, separou sua blusa favorita, sua pulseira de miçangas que fizera com sua mana, a coragem e um sorriso ensaiado como pesas principais do luque, deixando o medo no cabide e a insegurança na gaveta.

Todas às vezes que a família se reunia, em cada frase de sua mãe tinha que aparecer "Deus é fiel": "Bom dia, Deus é fiel!", "Como foi seu dia? Deus é fiel!", "Vamos almoçar? Porque Deus é fiel!", "Já fez as tarefas de casa? Deus é fiel!". Aquilo não irritava Bruna, apenas achava ridiculamente estranho acreditar na fidelidade de Deus, quando tudo não estava indo bem. Mas, com semanas de tanto ouvir "Deus é fiel" começou a repetir, "Deus é fiel" sabendo que dizer não é o mesmo que acreditar.

"Pra que esse sorriso?" Aquela voz que vem lá do fundo da cabeça. "A Bianca não está morta?" "Cadê o Deus fiel que tua mãe tanto fala?"

"Por que sempre tem que ter essa vozinha na minha cabeça?"

"Era pra ser você em vez dela."

—  Claro que não! Todo mundo sabe que a amo! O meu sorriso será apenas uma forma de dizer a Deus que aceito a sua vontade e um jeito de dizer adeus para a pessoa que mais amo. Disse, finalmente, em voz alta.

— Deus me deu e Ele mesmo tirou. Deus é fiel!

Essa frase pesava. Lá no fundo, não aceitava o que Deus tinha feito.

Chegando no cemitério às dez para sete. Saia do carro, com sua pequena mão segurava um buque e com a outra o Lup, blusa branca, rabo de cavalo, bochechas rosadas, olhos inchados; enchendo o peito de coragem deu o primeiro passo a dentro da futura casa de sua irmã. Vagarosamente se direcionou em direção ao pequeno caixão, não tinha forças para alcança-la, preferia naquele instante, desaprender a andar.

"Pensei que nunca mais ia a ver, lá estava ela, com aquele vestido vermelho cor de sangue. Pegue nas suas mãos, estavam tão geladas, queria dizer que a amava, mas ela não ouvia uma palavra. Olhava fixamente para mim, com aqueles olhos magnificentes. Estava tão pálida, porém tão bela, mesmo sem nenhum fio de cabelo. Coloquei suas mãos no meu peito, doía tanto, tanto! Havia em minhas mãos um buque para minha amada, não aceitou. Não se moveu, não respirou; a Deus meu amor."

Acordou no meio da noite, seu coração batia mais do que o normal.

"Não pode ser, não pode ser, NÃO PODE SER!" repetia fechando os olhos. Estava no seu quarto, cobertor quadriculado, progressão geométrica de nós na garganta e com as mãos no coração, tentando acalma-lo em vão. Era três da manhã, só faltava cinco horas para que seu sonho se torna-se real. 


A ultima gotaOnde histórias criam vida. Descubra agora