Julgamento

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Quando Madeleine chegou a Arras, o julgamento já havia começado. Devido à


sua posição como prefeito, não foi difícil entrar na sala do tribunal.


Observou Champmathieu. Era um camponês rude. Assustado. Negava ser Jean


Valjean. Garantia não ser ladrão. Encontrara o galho da árvore já arrancado e aproveitara


para ficar com as maçãs. Não havia invadido o pomar de ninguém. O advogado de defesa


mal tinha o que dizer. O promotor falou de sua vida passada. Do roubo da moeda de prata


de um menino. O acusado quis se defender. Garantiu ter sido carpinteiro em Paris. Teve


uma filha lavadeira, que morreu. O juiz lembrou que seu suposto empregador havia falido e


não fora encontrado. Além disso, já fora reconhecido, inclusive pelo inspetor de polícia


Javert. Dois antigos forçados foram trazidos ao tribunal. Ambos reconheceram o acusado como Jean Valjean.


O juiz ia terminar o julgamento, quando se ouviu uma voz.


- Olhem para mim!


Era Madeleine. Seus cabelos grisalhos em uma única noite tinham ficado brancos. Falou com as testemunhas:


- Não me reconhecem?


Os antigos forçados fizeram que não. Madeleine falou com os jurados.


- Ponham o acusado em liberdade. O homem que procuram não é ele. Eu sou


Jean Valjean!


O tribunal silenciou. Julgando que Madeleine estivesse fora de si, o promotor


pediu que chamassem um médico. Madeleine continuou:


- Não estou louco. O juiz está para cometer um erro e condenar um inocente.


Prendam-me.


Virou-se para os antigos forçados que testemunhavam contra o acusado. Chamou


a cada um pelo nome. Comentou:


- Lembra-se, Brevet? Na prisão, você usava um suspensório xadrez. Você,


Chenildieu, tem uma marca de queimadura no ombro direito. Finalmente, você,


Cochepaile, tem uma data tatuada no braço esquerdo. É a data do desembarque de


Napoleão em Cannes, primeiro de março de 1815. Mostre!


Os forçados, surpresos, confirmaram. Madeleine, com um sorriso de triunfo e de


desespero, falou com o tribunal:


- Esta é a prova. Jean Valjean sou eu!


O juiz, o advogado, o promotor, os jurados e o público ficaram em silêncio.


- Já que não me prendem, vou embora. O senhor promotor sabe onde me


encontrar e pode me mandar buscar quando quiser.


Atravessou a multidão devagar. Ninguém o impediu. Na porta, avisou:


- Senhor promotor, estou às ordens.


Saiu. A beleza de seu gesto, ao se entregar para salvar um condenado, provocara


o respeito de todos. Pouco depois, o júri inocentou Champmathieu.


Enquanto isso, o estado de saúde de Fantine piorava. Várias vezes, perguntou à


irmã Simplice sobre o senhor prefeito. Depois, concluiu que ele fora buscar Cosette.


- É por isso que não veio me ver hoje. Foi buscar minha filhinha!


A irmã Simplice rezava para que fosse verdade. Ao anoitecer, Madeleine voltou.


A irmã sugeriu:


- Talvez fosse melhor não ver a doente, enquanto a filha dela não chega. Assim,


ela pensará que o senhor foi buscá-la!


- Preciso falar com ela, porque há urgência.


A irmã permitiu que ele entrasse. Fantine dormia. Seu peito chiava. Estava branca. Frágil. Mais parecia que estava para voar do que para morrer. Abriu os olhos.


Ao ver Madeleine, sorriu, em paz:


- E Cosette?


Madeleine deu uma resposta evasiva. O médico aproximou-se.


- Está com febre, e a presença de sua filha vai agitá-la. É melhor sarar primeiro.


A pobre mãe insistiu:


- Mas já estou curada!


Em seguida, virou-se para Madeleine:


- Foi muito gentil em ter ido buscar minha filha! Ela é linda, não é?


Madeleine apertou a mão dela nas suas.


- Cosette é linda. Mas sossegue, logo vai vê-la!


Fantine exclamou:


- Eu a estou ouvindo! Meu Deus! Ouço sua voz!


Era apenas o som de uma menininha cantando ao longe. Fantine estendeu os


braços. Subitamente, sua expressão mudou. O rosto empalideceu. Os olhos,


esbugalhados pelo terror. Fez um sinal para Madeleine. Este se virou para trás.


Era Javert.


Pouco depois da saída de Madeleine do tribunal, já haviam se esquecido da


beleza de sua atitude. Foi expedida uma ordem para sua prisão. Orgulhoso por ter sido o


primeiro a identificar Jean Valjean, Javert viera buscá-lo. O prefeito ainda pediu:


- Por favor, me dê três dias para buscar a filha dessa mulher. Se quiser, pode me


acompanhar.


- Está caçoando de mim! - gritou Javert. - Três dias para buscar a filha de


uma prostituta!


Fantine começou a tremer:


- Minha filha! Então, Cosette não está aqui? Onde está, senhor prefeito?


Javert exclamou, agarrando a gola de Madeleine:


- Aqui não há nenhum senhor prefeito. É um ladrão, um forçado chamado Jean


Valjean, a quem eu prendi!


Fantine apoiou-se nos braços magros. Abriu a boca como se fosse falar. Mas


soltou um rugido. Rangeu os dentes. Estendeu as mãos como alguém que está se


afogando e busca onde se agarrar. Depois caiu sem forças no travesseiro. A cabeça bateu


na cabeceira da cama. Curvou-se sobre o peito. Seus olhos perderam o brilho.


Estava morta.
Madeleine se livrou de Javert. Foi até a cama. Ajoelhou-se e cochichou no ouvido


da morta. O que disse, ninguém sabe. Mas irmã Simplice garantiu ter visto um sorriso


brotar dos lábios da morta. Jean Valjean fechou seus olhos. Foi até Javert.


- Pode me levar. Estou às suas ordens.

Os MiseráveisOnde histórias criam vida. Descubra agora