Capítulo 5

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A retirada ignominiosa acendeu mais ainda a fúria de Kadiya. Imaginou ser descoberta ao lado de Jagun, arrastando-se de quatro sobre o cano escorregadio. Aquele encanamento não era usado há centenas incontáveis, porque os ruwendianos quando tomaram a antiga cidadela haviam construído um novo sistema de suprimento de água. Portanto, além de enferrujado e caindo aos pedaços, estava repleto de lixo podre e malcheiroso. Jagun dependurou a lanterna no pescoço, mas uma vez ou outra tinha de passá-la para Kadiya, enquanto retirava do caminho galhos mortos ou um emaranhado de mato molhado e amassado. Em alguns lugares as paredes tinham desabado completamente e eles seguiam por dentro da água, nadando as vezes, desviando-se dos obstáculos. Os joelhos do calção de couro de Kadiya logo se esgarçaram, deixando entrever a pele arranhada e vermelha. O tempo todo ela murmurava palavras que ouvia muitas vezes nos estábulos, mas que nunca tivera coragem de dizer. 

O rio está longe? - perguntou, afinal, olhando para as mãos dolorosamente feridas pelos espinhos do lixo que havia ajudado a afastar do caminho. 

Não muito. Se fosse dia, veríamos a luz lá adiante, pois estas malditas plantas não podem viver no escuro. Tome mais cuidado agora, pois este é um ótimo lugar para os gradoliks ou vermes da água.

Kadiya cuspiu a água lamacenta, de gosto horrível, e sentiu crescer dentro dela a raiva candente que a dominara ao primeiro alarme da invasão. 

— Que a lama eterna afogue todos eles! Que as víboras de Viborn abracem seus pescoços e seus pulsos.. 

— Poupe seu fôlego, filha do rei. Sem dúvida, quando chegar a hora, os espíritos encontrarão castigos para seus inimigos que até você vai achar adequados. 

— Nenhum castigo será adequado se não for infligido por mim! — respondeu ela, furiosa. 

A mão de Jagun no pulso da princesa era o sinal de alerta conhecido desde a infância. Kadiya engoliu em seco e ficou imóvel. 

Agora, semimergulhados na água, eles continuaram, escorregando na lama pegajosa, até chegarem a uma grade enferrujada. Passaram pela abertura feita ao lado por um pedaço de pedra desmoronado. Finalmente estavam a céu aberto. Outra vez Jagun estendeu a mão em sinal de alerta. 

Ele afastou-se um pouco da jovem, com a cabeça erguida. Apurando os ouvidos e usando seu faro de caçador, Jagun verificou a segurança daquela terra árida e esquecida. 

— Os labornoks devem ter estabelecido um posto de vigia não muito longe daqui. 

Kadiya olhou para trás, esticando o pescoço para ver melhor. Viu fogo lá em cima, chamas tremulantes.Pouco sobrava no interior da Cidadela para alimentar aquela fogueira da vitória, a não ser que os invasores tivessem arrancado as tapeçarias das paredes e queimado todos os móveis. Kadiya tentou ignorar os brados distantes, os gritos estridentes — procurando não pensar no que devia estar acontecendo.

— Que eu possa viver para abrir novas bocas em suas gargantas imundas! — A mão ferida que procurava a adaga encontrou o amuleto, através de um rasgão na camisa. — Se isto teve força para me fazer flutuar no poço. talvez possa me oferecer algo mais. — Segurou o pedaço de âmbar com força, como se quisesse embebê-lo no próprio corpo. 

Vontade — vontade e força — e tudo o mais que podia Pedir. 

— Senhores do Ar, todos vós que sois amparados pelo Deus Triúne, que vosso poder seja adicionado ao meu, vossa vontade à minha, para que sejam castigados com a morte todos aqueles que mataram os que acreditam em vós. Que paguem o preço do sangue, ó vós lá do alto, concedei-me o preço do sangue! 

Segurando o amuleto como quem segura uma espada, Kadiya apontou para as luzes do holocausto, lá atrás. 

A resposta foi um grito torturado na noite, o pedido rouco saído de outro barril. 

O Trílio Negro - Trilio - Vol 1 - Julian MayOnde histórias criam vida. Descubra agora