As outras noites

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A visão da esposa a velar-lhe o sono na noite na qual deveria cumprir seu papel físico como marido lhe enterneceu um pouco, mas não o suficiente para deixar de desgostar dela. Apenas, faria o possível para tornar a existência daquele ser tão cuidadoso menos penosa, já que não seria possível, ao menos assim julgava, que pudesse fazê-la feliz. O que não incluía fazer uso dela durante as noites. A escapatória usada para não ser obrigado a tal suplício fora a mesma da noite de núpcias. Enquanto o dia era dedicado a conviver pacificamente com a esposa, falando-lhe, ouvindo-lhe, lendo e demais coisas, a tarde e a noite eram dedicados ao copo que lhe servia de consolo e amigo para aquela sentença a qual fora condenado.

Carolina sentia-se feliz, principalmente depois que Fabrício lhe passara a ser mais aberto e simpático, ficando mais tempo com ela. Adorava as manhãs que passava caminhando com ele no jardim que cercava a casa nas quais trocavam amenidades sobre todas as coisas. O casamento parecia-se muito com a amizade, julgava ela, com o pequeno detalhe que era uma amizade eterna e diária. Longe de ser um suplício para si, a jovem esposa se deleitava com os cuidados ao marido, coisa que sempre viu sua mãezinha fazer pelo papai com todo o desvelo do mundo. Fazia-lhe tudo para facilitar a vida e, sempre que podia, os negócios, o que sempre era recebido com algum bom grado por Fabrício.

Apenas um detalhe incomodava muito a esposa: o cônjuge se embebedava noite após noite, tendo que ser retirado em estado de semiconsciência do gabinete onde se instalava no meio da tarde para praticar aquele odioso exercício. Quando interrompia a prática para o jantar, vinha ébrio com as faces afogueadas e transformadas em bicho, acuando a pobre esposa a uma atitude tímida e amedrontada. Aquela versão do marido era a que a feria com insultos sobre o volume de suas carnes, comparações com animais de grande porte, indignas de um cavalheiro e outras que não valem a pena refrisar.

- Fabrício, não é melhor que pare por hoje? - a voz era assustadiça e quase trêmula de quem segurava as lágrimas.

- Que tem você com isso, mulher? - saia a voz mole e ríspida acompanhada de um sorrisinho demoníaco - Acaso eu não posso afogar-me assim quando estou preso a tão pesado fardo? - ironizou enquanto apontava para a jovem que, há mais de duas semanas, era sua esposa.

Não houve resposta para o insulto apenas o silêncio contrito e a retirada da mesma para seu quarto de vestir, onde desafogou-se os ferimentos verbais do marido num pranto miado, ouvido pela parte sóbria da consciência de Fabrício, que pesou de imediato por causar-lhe tamanho sofrimento. Nesta noite, demorou a dormir, pois ficava olhando o momento que ela adentraria o recinto para velar o sono. Adormeceu sem contemplar tal cena.

Resoluto em reparar, de alguma forma o dano, Fabrício ficou três dias sem por álcool na boca e assim, permitiu que a esposa desfrutasse, ainda que ilusoriamente, de sua presença e conversa. Neste trio de dias, o casal se fez ver pela sociedade no teatro e na ópera, onde Carolina se portava com naturalidade e conversa fluida e inteligente. Aquilo causou boa impressão no marido, que agradeceu aos céus por tê-lo concedido uma mulher com cérebro para coisas inteligentes, literatas e até filosóficas. Apenas por um dia não saíram a rua, foi quando uma chuva torrencial caiu sobre o Rio de Janeiro.

- Estragou-se a noite - bufou o marido observando os céus se abrirem em água.

- Se quiseres, meu senhor, posso tentar remediar este contratempo - ofereceu-se Carolina que estava sentada na sala, observando a inquietação do marido ante ao contratempo que se colocava naquela noite diante da diversão que havia se proposto.

- Como pensar em fazê-lo, Carolina? - inquiriu com um ar de bom humor lançando um olhar a figura da esposa.

- Bem, íamos ouvir boa música. Penso que posso oferecê-la de alguma forma... - respondeu já se pondo de pé e caminhando até um piano formoso que ornava um canto da sala.

- Ora, então vamos ver o que tem escondido de mim, senhora Aguiar - gracejou Fabrício acompanhado-a sentar-se no piano com um olhar.

- Nada de muito impressionante... - sorriu a jovem dedilhando algumas notas no piano, tirando de cabeça a melodia de Pour Elise de Bethoveen. As mãos corriam pelas teclas do piano embalando a tão famosa canção, demonstrando agilidade e domínio total do instrumento. Ao fim daquela execução perfeita, apenas coube a Fabrício o papel de aplaudir a esposa que estava corada.

- Deus, tenho em casa um talento! - admirou-se aquele amante da boa música com a raridade de uma jovem que tocasse uma peça de tamanha delicadeza com aquela assertividade. - Dê-me mais uma prova de quem não estou sonhando com isso, esposa.

- Desta vez, irei de Liszt. Vamos ver se ainda me recordo do Liebestraum - mordeu a pequena os lábios e cerrou os olhos a procura das notas que tinha na mente. Logo, a balada serena foi enchendo a sala e acalmando inclusive a chuva que despencava, tornando-a em fina garoa como se os céus quisessem ouvir aquela notas interpretadas por Carolina. Ao cabo da nova prova do talento de sua esposa, o marido aplaudiu efusivo e solicitou um Chopin e depois, propôs um desafio: queria ouvir a mulher cantando.

- Pela virgem! Não... - negou-se tornando ainda mais vermelha e desviando o olhar - Não o faço há séculos e minha voz não tem a mesma afinação de anos atrás.

- Sinto que a senhora está sendo modesta... - provocou Fabrício com um galenteio na voz que Carolina não poderia ressistir-lhe. - Apenas uma e darei meu julgamento.

- Uma apenas com ou sem julgamento! - alertou a mulher insistente novamente tornando toda sua atenção ao instrumento. Os olhos se fecharam novamente e os dedos deslizavam pelo instrumento do qual ecoavam notas fortes da introdução do Coro dos Escravos Hebreus da ópera Nabucco, de Verdi. Quando a música foi se acalmando, Fabrício viu a jovem fazer os pulmões se expandirem e logo, as primeiras notas de sua voz de soprano deslizarem pelo seu ouvido. A música era quase uma prece na voz de Carolina, que, por encanto, foi atraindo a presença dos criados que nunca ouviram aquele tipo de coisa. Cantou o último verso que dizia "Que o Senhor inspire a harmonia, que transforme a dor em virtude" com fervor religioso tanto que ao repetí-lo como pedia a música, sentiu o coração rezar por aquele pequeno pedido. Quando o último acorde cessou, nada de palmas, mas apenas o silêncio reverente pela sensação causada pela música. Ao cantar, depois de muito tempo sem fazê-lo, Carolina sentiu-se leve como se as notas da música tivessem servido de balsamos para suas dúvidas e medos. Por outro lado, Fabrício, apesar de entorpecido pela beleza, ainda sentia toda a indireta do verso do tal coro. Sentia que ela pedia que o Criador lhe transformasse a dor daquela indiferença talvez num casamento virtuoso e ele sabia que não podia dá-lo, por mais que houvesse um sentimento de amistosa cumplicidade crescendo entre os dois.

- Bravo, Carolina... - foi tudo o que disse voltando ao seu tom morno enquanto sentia um crescente incomodo arder-lhe a garganta e clamar por algum tipo de álcool. Sem mais nenhuma palavra, retirou-se para o gabinete, deixando com que Carolina murmurasse novamente aquele um verso para o Céu.

- Que transforme a dor em virtude.  

Os caminhos da InocênciaOnde histórias criam vida. Descubra agora