Havia um nome de mulher no extremo sul do país que causava temor e respeito até no mais desajuízado dos homens: Carmem Martinez Gonçalves. Para as bandas da fronteira com o Uruguai e com a Argentina, não havia quem não conhecesse o gênio tinhoso daquela anciã disposta que tocava sozinha muitos acres da Estância São Paulo do Sul, uma das maiores de toda província. Foi esta Carmem e seus respeitados cabelos brancos que recebeu a neta mais velha vinda do Rio de Janeiro com um semblante sem emoção e traços rugosos adquiridos com os anos.
- Estás bem, chica? - inquiriu com seu sotaque rascante puxado para o espanhol.
- Sim, minha avó - respondeu Carolina com a figura intimidadora e alta da avó.
- Tens que saber que não quero choro e nem o nome do sacripantas borrabotas infeliz do janota com quem te casaste sendo citado debaixo do meu teto sagrado - alertou a velha com voz firme e os olhos crispando ameaçadoramente - Já que o Duarte não foi homem para resolver tua vida decentemente e tua mãe foi fraca e cega, farei as vezes de única sã dentre seus parentes para lhe dizer algumas boas verdades. - a velha fez uma pausa e algo bem parecido com um sorriso surgiu nos lábios da velha - Mas antes, vá se banhar e lavar esta cara. Coma e beba. O julgo do seu maligno esposo acabou, minha neta.
Assim foi Carolina recebida pela avó que a acomodou num quarto grande espaçoso da grande construção da sede daquela propriedade. Com a personalidade forte da Doña Carmem, como era conhecida, lhe era impossível permanecer num estado de lamento.
- Ficar lamentado é dar razão ao asno! - ralhava a velha toda vez que a neta ficava aluada ou com um semblante triste - E nenhuma neta minha dá razão a asnos! - gritava a plenos pulmões gesticulando os braços fortes com certa raiva.
A paisagem dos pampas gaúchos davam algum alento a Carolina que, em silêncio, deixava o tempo tratar o coração ferido e ardendo em saudades e raivas de Fabrício. Ali era o lugar perfeito para longas caminhadas ou cavalgadas onde podia chorar sozinha sem a avó para lhe lembrar que ela era a única que não devia derramar lágrimas. Com Maria como sua única companheira, passava horas perdida entre as terras da velha Carmem, observando por vezes, a vida transcorrer a conta gotas diante de si enquanto o espírito era moldado a nova realidade de mulher recusada, abandonada pela figura que mais inspirava seu amor naquele mundo.
Quando não estava pelos campos, estava rezando diante do altar que a avó mantinha dentro de casa. Precisava aliviar as dores do espírito e as dores da saudade de Fabrício, que apertavam a cada dia, mesmo diante da indiferença com que a tratara. Aos Céus, pedia apenas a abreviação de seus dias para que tudo aquilo pudesse ter fim logo, afinal, não se sentia útil sem devotar a vida aos cuidados da estimada figura maligna. Apesar de saber das dores da neta, Carmem não tocava no caso. Irritava-se toda vez que via a menina num mar sem fim de autocomiseração e culpa. A vida a fizera ter uma dura casca, mas aquela moça era uma rosinha delicada carregando um fardo que suas pétalas talvez não suportassem.
Foi numa tarde, muitos dias depois da fuga da espoa, quando o sol ia deitar que Fabrício desembarcou da carruagem que o trouxera desde a vila mais próxima até a propriedade onde fora informado que a esposa estava. Consigo trazia uma bagagem de arrependimento pelo mal praticado e olhos saudosos da figura de Carolina. Não sabia o que diria, nem o que faria, mas sabia que, de todos os lugares do mundo, era ali que deveria estar. Os olhos correram a fachada branca da propriedade em estilo colonial como se buscassem pela silhueta da esposa, mas uma figura em especial chamou atenção: uma velha senhora de aspecto forte como guerreira amazona, elegante nas vestes rústicas, mas com uma aura de ameaça nos ombros largos. Os braços cruzados demonstravam duas coisas: ali estava a dona do lugar e ela não iria dar boas vindas.
- Boas tardes, dona Carmem - reconheceu Fabrício a avó da esposa.
- Espero que tenhas te desabalado da capital apenas para me dar boa tarde, verme infeliz - este foi o cumprimento da velha que estava apoiada, agora mais perto o rapaz podia ver, num cabo de espingarda que brilhava mortal para ele.
- Vim falar com minha mulher! - falou com toda a firmeza que conseguiu reunir soando firme na sua decisão.
- Não tens mulher - pontuou a velha com o olhar frio pousado no rapaz - Vai-te embora, Aguiar - ordenou sem alterar o tom falsamente manso.
- Quero vê-la - solicitou dando um ousado passo a frente.
- Não costumo ser desafiada por infelizes desajuízados como você... - suspirou como se outra opção não lhe faltasse - Mas quando o sou costumo usar um pequeno remédio contra desobediência a minha palavra, guri - enquanto falava, ia erguendo a espingarda sem dificuldades até deixá-la sobre o ombro com o cano apontado certeiramente para a cabeça de Fabrício, que sentiu um tremor subindo a espinha.
- A senhora não ousaria... - titubeou ele ao ouvir os cliques metálicos daquele instrumento mortal se armando para trabalhar.
- Pergunte aos infelizes desta terra de nosso Deus se dona Carmem é mulher de faltar com a palavra tanto para a vida quanto para a morte...- sibilou enquanto mantinha a mira bem entre os olhos de Fabrício.
Foi bem durante o tenso diálogo que a figura de Carolina surgiu atrás da avó com um olhar assustado pela presença do marido e, ainda mais, pelo fato da velha tê-lo sob a mira de uma espingarda que, como ela bem sabia, Carmem sabia usar muito bem.
- Carolina - balbuciou quando seu olhar se deteve na figura da esposa.
- Fabrício... - a voz quis falhar ao ver a figura do marido tão maltratada e pouco saudável com os olhos fundos de quem não dormia bem. Quis lhe dizer das saudades que sentia, mas a lembrança do que sua figura causava nele voltara a tona e a fez recuar nos sentimentos que tinha por ele - Vá embora. Não tem nada que buscar aqui. - a voz lhe soara forte, quase que autoritária, como uma máscara para o tom de quem implorava.
Os olhares do casal se encontraram e sustiveram em silêncio por instantes. O dele era entrecortado pelo cano da espingarda. Já o dela fora maltratado pelas noites em claro chorando e o cansaço que se abatera sobre ela. Mas, se Fabrício procurava os olhos de quem se arrastaria de volta, havia se enganara. Havia um pouco de brio, de obstinação naquele olhar e um rio caudaloso de tristeza e dor o acompanhando. Os olhos outrora doces de dona Carolina eram os fies retratos de seu estado solitário e incerto.
- Vá, moleque! - dona Carmem quebrou o silêncio enquanto seu dedo escorregava pelo gatilho da arma - Vá antes que meu dedo escorregue nesta arma.
Sem opção e pouco desejoso de perder a vida, Fabrício lançou um último olhar para Carolina. Os olhos do homem tinha um aviso silencioso de que ela não deixaria de vê-lo tão cedo. Um meio sorriso apareceu em seus lábios ao gravar o quão linda a figura dela parecia iluminada pelos raios da tarde e ele deu de costas sem dizer nada mais, entrando na carruagem que partiu em disparada pelo mesmo caminho da vinda.
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Os caminhos da Inocência
Ficção HistóricaBrasil Imperial, meados do século XIX. Carolina e Fabrício foram destinados a se casar antes mesmo que tivessem nascido por uma promessa feita pelos pais de ambos. Todavia, quando finalmente se unem, Fabrício descobre que a mulher que lhe fora dest...