O plano era simples: oferecer suas refeições a Maria, a qual havia pedido ao pai que lhe servisse de dama de companhia em casa, deixando de comer e assim diminuir o tamanho de sua circunferência, que tanto incomodava o marido. Para que lograsse êxito em seus intentos, deixou de partilhar as refeições com Fabrício, preferindo fazê-las em seus aposentos.
Fabrício, que não suspeitava de nada, seguia com sua rotina com a esposa durante o dia e com o copo pelas noites. A presença de Carolina já não era insuportável e ele já aprendera a estimar sua devoção, a ouvir seu senso de sabedoria ao opinar e simplesmente adorava quando ela estava ao piano acalmando os demônios interiores dele com sua voz calma tal qual o pequeno Davi fazia com o rei Saul, ao torcar harpa para espantar os maus espíritos do soberano israelita. De alguma forma, a sua maneira, estimava a pessoa de Carolina, mas não sua figura.
No primeiro dia do jejum ao qual ela se impusera, sentiu o estômago reclamar e arder fome. Para aplacar um pouco o incômodo, ela tomava água. Já no segundo, o corpo ainda reclamava por ser abastecido, fazendo roncar o estômago enquanto observava a vontade com que comia Maria.
- A senhora não deveria fazer isso...- a atrevida dizia dia após dia - Tão bonita e robusta. Vai adoecer!
- Deixe de se preocupar comigo, Maria - suspirava a cada dia alimentando-se do cheiro das comidas que mexiam com o seu interior de uma forma animal.
Lá pelo quarto dia, Carolina se sentia trêmula, mas, como receberia uma visita de Ferdinando com o esposo, forçou-se a estar de pé. O convidado chegou no começo da tarde e alegrou um pouco o semblante cansado da anfitriã com sua conversa divertida e cheia de vida.
- Já ouviu sua esposa tocar e cantar, signore? - inquiriu ele sem dirigir um olhar a Fabrício, o olhar pousava ardente nela - Posso jurar que nem um batalhão de anjos canta tão lindamente.
- Tenho tido essa felicidade quase todo dia, senhor duque - enfim, algo agradável sobre o qual o dono da casa podia falar com a insuportável figura do italiano. - E devo dizer que concordo totalmente com vossa Excelência.
- Os senhores são gentis em dizê-lo - a voz saiu trêmula quando Carolina falou timidamente.
- Somos gentis porque gostaríamos de ouví-la deleitar nossos ouvidos com sua voz, signora Aguiar - Ferdinando abriu um irresistível sorriso gatuno - Não acha, meu bom amigo?
- Estou de pleno acordo - assentiu o dono da casa observando a esposa com um olhar de aprovação. Entendendo esse pequeno sinal, Carolina ergueu-se da poltrona de onde estava e caminhou tentando manter-se sem vacilar até sentar no piano. Nada disse, mas sentiu tontura naqueles breves passos, recuperando-se um pouco ao sentar-se. De olhos fechados, respirando fundo, ela tentou lembrar-se de algo e só lhe veio uma ideia a mente. Respirou fundo e tirou as primeiras notas de um dueto da ópera Les contes d'Hoffmann de Offenbach, que vinha lhe acompanhando a algum tempo. Como sempre acontecia, a voz angelical da patroa atraiu os criados que apuraram os ouvidos atrás da porta para ouvir o som romântico que saia da sala. Os dois homens acompanhavam embevecidos pela prima donna que ali se apresentava tanto que estavam no céu quando ela cantou as últimas notas e, antes de receber os aplausos, se pôs a levantar.
Carolina sentia que o corpo lhe pesava por inteiro e uma força quase cósmica lhe puxava para a terra. Deu dois passos vacilantes e, cedendo, foi ao chão antes que pudesse balbuciar qualquer coisas. Caiu desacordada e inerte.
- Carolina! - a voz de Fabrício se fez ouvir de longe enquanto se apressava em acudir a mulher que jazia no chão - Mulher, o que se passa? Carolina!
- Você...chame um médico para acudir a patroa - ordenou o duque a Naná que se viera ver o que se passava com o grito do patrão. A mulher saiu apressada enquanto a negrinha Maria observava aflita tudo de longe. - Meu amigo, é melhor levá-la para os aposentos enquanto o bom doutor chega. - sugeriu o italiano que foi acatado de imediato.
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Os caminhos da Inocência
Narrativa StoricaBrasil Imperial, meados do século XIX. Carolina e Fabrício foram destinados a se casar antes mesmo que tivessem nascido por uma promessa feita pelos pais de ambos. Todavia, quando finalmente se unem, Fabrício descobre que a mulher que lhe fora dest...