Capítulo 2- Ela

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-Você perdeu o juízo! ?- berrou meu tio

Eles tinham levado meus primos na escola e decidiram ficar comigo para gritar até eu dizer chega. Eu havia lavado meu braço, mas ainda estava bem vermelho, fora as marcas que já estavam lá.
-Você é doente! -minha tia berrou
-Ilana, fala alguma coisa!- ele mandou
-O que quer que eu diga!?- olhei para eles
-Olha para seu braço! Isso é burrice! -ele berrou mais- quer chamar atenção? É isso?
-Claro que quer!- minha tia acusou mais
-Eu não tenho nada a dizer- murmurei
-Eu disse que ia cuidar de você- meu tio falou -mas não aguento mais esse seu teatro de garota vítima. Seus pais morreram! Não vão voltar! Aceita isso de uma vez.
-Eu não quero mais você aqui!- minha tia falou
-Eu não tenho outros tios- falei
-Eu sei. Mas não tenho que aguentar o fardo do meu irmão e sua esposa- meu tio cuspiu

Fardo.
-Vamos internar você numa clínica- minha tia anunciou
-O que? -olhei para eles
-exatamente- minha tia cruzou os braços
-Eu não quero ir para uma clínica- me pus de pé
-Mas você vai- Meu tio afirmou

Eles não querem você, ninguém quer você.
Aquela voz. Sim, eu tinha uma voz na minha cabeça que parecia falar comigo. Como se quisesse me mostrar a realidade, as vezes parecia que vinha das lâminas.
-Arrume sua coisas, vamos levar você- meu tio saiu irritado

Eu arrumei minhas malas sobre o olhar observador da minha tia. Ela me olhava irritada como se eu fosse doente. É claro que ela ia julgar, assim como todos fizeram.
Leve-as. Leve as lâminas. Você sabe que vai precisar.
Peguei a caixa onde guardava minhas amigas e guardei no fundo da mala. Por fim, estava pronta.

Meu tio me levou para a clínica sem dar uma palavra o caminho todo, meus dedos coçavam para me cortar mais uma vez, e eu sei que faria.
Eles estão te rejeitando também. Ninguém quer você. Você está sozinha, por que ainda esta aqui mesmo?
Meus olhos ficaram marejados, mas não ia chorar.
-Olha, Ilana...-meu tio atraiu meu olhar- me desculpe pelos gritos. Mas é pro seu bem, você vai melhorar, e assim...voltar a ser uma garota normal. Eu prometo.
-Tá bem- sorri querendo chorar
-Chegamos- ele parou na frente de um grande prédio bem estruturado

A clínica nos recebeu bem, meu tio falava com a recepcionista e eu estava sentada com os braços cruzados, me sentia como uma criança pequena que ia tomar uma vacina ou fazer um exame de sangue. A enfermeira sorriu para mim e levou minha mala adiante. Meu tio veio até mim ao lado de uma médica.
-Oi...-ela sorriu para mim- me chamo Odete.
-Ilana- sussurrei
-Que nome bonito- ela sorriu
-Ela é a médica que faz sessões com todos internados aqui- meu tio falou
-Entendi- me levantei
-Seu quarto já está pronto- ela mostrou o caminho
-O senhor vem me visitar?- perguntei para meu tio
-Talvez- ele sorriu

Não vem Ilana..eles não vem.
Assenti e segui ao lado da médica.

A clínica tinha em media 1.200 adolescentes internados com caso de depressão. 500 já tinham se matado; 30% cortando uma veia, 25% com excesso de remédio e 45% enforcados em seus quartos.
Qual desses casos será o seu?
A doutora Odete abriu a porta revelando o quarto onde eu ficaria. Não era grande coisa mas eu conseguiria ficar ali.
Olhei para minha mala que estava aberta sem nada mais dentro
-Onde estão minhas coisas?- corri até lá
-A enfermeira arrumou suas coisas na gaveta- a Drª avisou
-Todas?- fui até a cômoda
-Só tirou o que não é permitido.

Minhas lâminas.
Olhei para a doutora vendo que ela sabia.
-Mostre seu braço Ilana- ela pediu

Dei um passo para trás me sentindo encurralada.
-Por favor, não vou te machucar- ela sorriu

Ergui meu braço e mostrei as marcas que já faziam parte de mim. Ela anotou em uma prancheta e eu abaixei meu braço sentindo raiva desse lugar.
-Na parede tem os horários, você terá que cumprir cada um deles. São várias atividades ao longo do dia- ela avisou e saiu

Olhei para a parede onde havia uma lista escrita:

Atividades, sessões e interação
° 07:00- café da manhã
°08h00- Desabafo
°08h30- Aula de artes
°09h00- Culinária
°10h- filme com pipoca
°11h00- terapia profunda
°12h- almoço
°13h- horário particular
°14h- horário particular
°15h- Sala de vídeos
°16h- biblioteca
°17h- artesanato
°18h- Pensamentos no papel
°19h- Vídeo aula
°20h- Toque de recolher

Me sentei na cama tentando absorver isso tudo. O que eu faria agora? Estou presa aqui, e pegaram minhas lâminas. Todas elas.

O relógio marcava 16h, no horário daqui significa Biblioteca. Eu não sei se estava pronta para ir até lá e ver muitos outros assim como eu fazendo sabe lá o que. Mas eu precisava achar uma jeito de arrumar umas lâminas, meus dedos coçavam as feridas recentes fazendo elas sangrarem de novo. Caminhei para fora do quarto vendo médicos e mais médicos ali. Alguns me olhavam sorrindo, dando-me boas-vindas. Entrei na biblioteca vendo muitos adolescentes ali. Eles me olharam mas logo voltaram a suas atividades.
Eu não era o centro do mundo. Ótimo!
Caminhei pelo canto da sala e uma enfermeira veio até mim.
-Você deve ser Ilana- ela sorriu
-Sou eu..-afirmei
-Bem vinda, pode pegar um livro e ficar a vontade- ela disse

Olhei em volta tentando ver onde não me notariam. Ao canto da sala tinha uma menina gótica. Cabelo curto, olhos pretos da maquiagem e roupas folgadas, ela tinha um livro nas mãos e na outra uma gilete.
Bingo!
Peguei um livro qualquer e caminhei até lá. Tinha muitos adolescentes ali como disse. Garotos sentados com outros, garotas sentadas com outras.
A gótica me olhou confusa e então eu sentei de frente para ela
-Não quero papo- ela falou
-Nem eu- respondi
-Então?
-onde conseguiu essa lâmina? -perguntei
-Tenho várias- ela deu de ombros
-Como?- indaguei
-Tenho meios- ela cruzou seus braços me avaliando
-eu quero uma- implorei baixinho

Querida Lâmina. . .Onde histórias criam vida. Descubra agora