Fraca e Incapaz

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Uma vez mais eles estão aqui e assim como antes, eu sei o que vão fazer.
As máscaras e os rostos desconhecidos, os equipamentos que eu jamais imaginei existirem. O metal brilhante e afiado.
Quente. Dor. Pavor.
Tudo é apenas um teste, as criaturas dizem, mais um teste para provar suas verdadeiras naturezas, instintos que eu acreditava serem meus, mas que agora sei que estão além das estrelas.
Além do que a dor me deixa enxergar.
O escuro é o meu companheiro nos momentos em que eles me deixam sozinha, acompanhada de pensamentos perdidos, de tempos que eu sei que jamais voltariam. Eu me contento com as horas que passam e com o relógio que conta a minha morte. Um tique taque assustador que parece invadir minha cabeça e esmagar minha consciência como um martelo.
Um, dois, três, quatro.
Dias, segundos, minutos.
Anos?
Não fazia diferença. Não para eles e seus testes, não para os monstros alienígenas que perturbavam meu sono, os que eu pensava serem parte de um conto qualquer ou de uma história assustadora contada apenas para entreter os mais jovens. A realidade para mim era a mais fria de todas as histórias e eu tinha certeza que jamais conseguiria contá-la para mais ninguém.
Meus olhos ardem quando o escuro é trocado pelas luzes fortes, pelos testes... os malditos testes.
Eles sabem quem eu sou, por que continuam perguntando? Com toda essa... tecnologia, como podem não me entender? Isso também seria parte do teste?
Eu não consigo dormir a dias, a comida que eles me trazem é indigesta, o terror e o sofrimento que eles me impõem me oprime e me esmaga dentro do cubículo que virou a minha mente. E naquele pequeno quarto escuro eu me pergunto sobre minha própria natureza, sobre todos os testes que eu mesma já realizei, sobre todas as cobaias que abri, cortei e estudei. É ali que percebo da pior forma possível, que não somos tão diferentes assim. Nós destruímos o desconhecido com medo de que ele nos destrua primeiro, nós matamos antes de nos sentirmos seguros. No final das contas, a morte era o que mais nos conectava.
Essa era a nossa natureza. Essa era a natureza deles.
E pensar dessa forma me fez perceber que eles não eram tão alienígenas assim e que a única coisa que nos separava eram as infinitas estrelas e galáxias que se estendiam como um tapete celestial, uma distância que ultrapassava até mesmo aquele tique taque infernal. O tempo não é nada perante a grandeza de nossa consciência e de nossas ações.
E com aquele pensamento eles me levaram mais uma vez. E eu gritei, assim como em todas as outras vezes que eles me cortavam. Vez após outra.
O que me manteve viva durante tudo aquilo? Talvez a dor imensurável que era tão forte que espantava até mesmo a morte, ou então era apenas meu desejo de sobrevivência me lembrando que minha família ainda me esperava voltar para casa.
O escuro e as luzes, o ciclo eterno de dia e noite, dor e pavor. Eu estava enlouquecendo e tudo o que queria era que eles parassem, mas eles não paravam. E quando eu finalmente havia pensado que aquilo jamais acabaria, tudo se calou. Ainda havia algum sentimento naquelas coisas? Algum daqueles monstros se importava comigo de verdade? Talvez o que me tirou de lá, o mesmo que me carregou para fora contrariando todos os alarmes que soavam. Os mesmos olhos que se apiedaram de meu sofrimento durante aqueles testes horríveis.
Então eu me perguntei "Ainda há esperança para nós?".
Inútil. Eu já sabia a resposta.
O ar morno da madrugada desértica soprou em meu rosto ferido e eu me senti renovada uma vez mais. Naquele momento quando as lágrimas negras escorreram pelos meus olhos, havia percebido finalmente que sim, éramos iguais.
Não havia diferença entre mim e os humanos e isso era tudo o que eu precisava saber para abrir o peito dele com as mãos.
E observando a vida esvair daqueles olhos piedosos, senti o gosto adocicado que sua alma teve ao ser absorvida pelo meu corpo. Uma alma repleta de ódio e assim como a minha, banhada em sangue.
Comida de verdade, finalmente.
Eu sempre temi a natureza daqueles alienígenas, mas uma parte de mim via neles a esperança que minha raça há muito havia perdido. Eu ansiava que eles não fossem como nós, eu esperava que eles fossem a salvação para o meu povo à beira da extinção. Por mais que eu desejasse, aqueles testes brutais haviam provado que eles não possuíam a bondade que nos salvaria de nossa autodestruição, assim como nós eles apenas ansiavam por poder e destruição, a morte corria em nossas veias assim como corria nas deles. Sentimentos negros que serviriam de combustível para um povo sedento por destruir e conquistar. Um povo tão humano quanto eles próprios.
Se os humanos tivessem entendido que minha real missão era de paz, se ao menos tivessem se dado ao trabalho de ouvir o que meus amigos pretendiam dizer antes de estourarem suas cabeças, talvez tivessem entendido sobre a aliança inquebrável que formaríamos, ascendendo as duas raças como uma só, um poder que se ergueria além das estrelas.
Mas os humanos haviam me provado apenas o que já sabíamos. Que seu instinto de destruição temperaria suas almas com o açúcar que nos moveria um pouco mais, um passo adiante rumo a nossa própria extinção, assim como a chama que consumia a si própria. Era nosso destino no final das contas.
Meus olhos refletiram o brilho de centenas de estrelas que se apagavam naquela imensidão azul escura, um chamado silencioso que dizia que estava feito, que eles haviam torturado, matado e destruído. Que os humanos da Terra eram apenas... humanos. E sentada em meio ao deserto eu olhei para o céu e para a infinidade de estrelas que agora surgiam e cresciam.
Uma, duas, mil.
Estrelas que não se apagariam nem mesmo durante a luz do dia.
Em breve minha família estaria lá e eu sabia que seria eu a estar do outro lado da mesa de operações. E seria eu a conduzir os testes. E seria eu a matar, torturar e destruir.
Sorrindo, eu pensei que não haviam mais monstros com os quais me preocupar.
Não quando eu própria havia me tornado um deles.
Me tornado uma humana.

Fraca e IncapazOnde histórias criam vida. Descubra agora