Branco

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Com o passar dos anos eu tinha obtido uma certa imunidade a hospitais. Eles não costumavam me deixar tão nervosa quanto a outras pessoas, embora toda a tristeza presente, o cheiro do lugar e a sensação de “doença no ar”, ainda me incomodassem um pouco. Mas também era o lugar onde mamãe salvava vidas quase que diariamente, então crescer fazendo visitas constantes aquele lugar não era tão ruim.

Era legal ter uma mãe médica. E eu tinha certeza de que embora ela ficasse um pouco brava quando me machucava eu era sua paciente preferida. Eu era a única em quem ela dava um beijinho para sarar mais rápido.

Mas naquele dia eu não queria ir. Sentia falta de papai, mas cada dia que se passava, cada vez que ia visitá-lo, me faziam chorar. Eu queria que mamãe o curasse, mas ela me dizia que não podia. Ele ia morrer, era óbvio, mesmo que tentassem me confortar oferecendo o contrário. Mesmo que ele sempre sorrisse quando me visse. Algumas crianças não tinham noção da morte como eu tinha, ouvi mamãe falando sobre isso com meu tio, mas eu sabia que papai não ia voltar. Eu tinha perdido vovô no ano anterior e ele não tinha voltado. Tinha visto muitas pessoas sofrerem o hospital para me iludir do contrário.

Mesmo assim vesti meu melhor vestido, um amarelo-claro que papai tinha comprado para mim, pedi para mamãe pôr um laço de fita branca no meu cabelo e deixei que ela me levasse até o hospital. Quando entrei no quarto dele senti raiva, que fez com que meus olhos lacrimejassem. Eu odiava aquelas paredes brancas, os lençóis, tudo. Como podiam dizer que preto era a cor do luto, da morte, se todo aquele branco me dizia tão explicitamente que aquele era o fim? Onde estava a paz que aquela cor deveria representar?

Papai abriu os olhos fracamente quando me aproximei da cama e logo abriu um sorriso, também fraco, mas verdadeiro.

– Bom dia, princesa – sua voz não passava de um sussurro. – Você está linda. Vai pra algum lugar? Sair com o namorado talvez?

Ele estava tentando me distrair. Brincar comigo. Eu não tinha namorado, tinha acabado de fazer nove anos.

Balancei a cabeça dizendo que não e sorri, tentando afastar a tristeza.

– Hum, isso e bom, quero você só pra mim. Venha suba aqui. Cassandra, ajude-a a subir na cama.

Mamãe levantou da cadeira que constantemente ocupava e me ajudou a subir, tomando cuidado para que eu não batesse sem querer em nada que estivesse conectado ao corpo magro de papai.

Ela parecia cansada, mais cansada do que quando fazia plantão. Já tinha se acostumado a me deixar com alguém da família e dormir quase sempre ali no hospital, mesmo que papai insistisse para que ela fosse para casa na maior parte das noites. Ela tinha até mesmo largado o emprego por um tempo para cuidar dele.

Me inclinei com cuidado sobre ele e dei um beijo estalado em sua bochecha. Ele riu e pôs uma das mãos sobre a minha.

– Vamos, carinho, me conte como está indo na escola.

A partir daquele momento começamos uma conversa sobre coisas banais e não tocamos no assunto morte em instante algum. Deixei de fora a parte sobre muitas pessoas terem passado a me olhar de forma diferente, com pena e contei sobre as atividades e as brincadeiras. Contei também que o tio Roberto tinha dito que ia me levar no Zoológico no fim de semana. Eu estava tentando fazer ele feliz, tentando mostrar que não estava triste. Mesmo que fosse uma mentira. Não queria que ele se preocupasse.

Parei de tagarelar apenas quando percebi que os olhos dele estavam se fechando de tempos em tempos. Papai se desculpou e disse que precisava dormir um pouco. Ele também parecia desconfortável e me perguntei se ele estava sentindo dor novamente.

Amizade (Im)perfeitaOnde histórias criam vida. Descubra agora