Açúcar

196 5 0
                                    


Leave this blue neighbourhood/ Never knew loving could hurt this good/ And It drives me wild

          Mais um ano. Outro dia convivendo com essas mesmas paredes brancas, manchadas e cheias de infiltrações. O mesmo cheiro de café recém feito misturado com o cheiro das roupas sujas espalhadas pela casa. A mesma cozinha de armários azuis claros, pia transbordando de louça suja e xícaras lascadas. O mesmo relógio de parede tiquetaqueando. Tic-tac, tic-tac, tic... tac.

Tic.

Tac.

T...

          Me levanto do sofá xadrez vermelho e branco, velho e desbotado, que mais parece a primeira toalha de piquenique da história. Sirvo outra xícara de café, às 7:15, colocando 3 colheres de açúcar, uma das várias manias que adquiri com o tempo. O negócio do açúcar faz com que a vida se torne mais suave; como se eu ainda fosse uma criança, como se  o tempo voltasse e eu me servisse um copo de leite e colocasse 5 colheres de achocolatado, só para ficar igual ao da lata.

          A vida, no entanto, só é suave nesse único e exclusivo ponto.

          Eu nunca fui esse tipo de pessoa que sai para lugares com pessoas para fazer coisas. Sempre preferi meus livros e cafés cheios de açúcar (ou leite com achocolatado, muito achocolatado). Por isso, nunca tive muita companhia além dos personagens literários ou alguns babacas que insistiam em me chamar de "bicha" na escola, como se isso fosse uma ofensa horrível. Babacas.

          Além disso, nada de companhia. Já fiquei a fim de algumas meninas, é claro. Porém, nenhuma  delas pareceu notar e eu não fazia nada para mudar isso. Estava mais confortável assim, obrigado. Ao lembrar disso, logo penso em cachos e pele dourada, cheiro de canela e intermináveis colheres de açúcar. Felizmente, consigo afastar as memorias da minha cabeça.

          Acabo outra xicara, levando-a para cozinha para fazer companhia as outras louças sujas. Vou ao banheiro, então, que fica dentro do único quarto do apartamento alugado, para me arrumar. Digamos que eu não sou totalmente desleixado, apesar da minha casa e aparência provarem ao contrário.

          Encaro meu reflexo no espelho que fica logo acima da pia verde antiga. Como de costume, meus cabelos escuros estão desarrumados, as habituais olheiras entorno dos meus olhos orientais emoldurados pelos óculos de grau. Normal. Invisível. Insignificante. Eu.

          Arrumo o cabelo com os dedos, escovo os dentes e lavo o rosto. Ao fazer isso, ponho meus óculos de armação preta e fina na beirada da pia, pela milésima vez.

          Só que, dessa vez, ele cai. E quebra.

          É assim que temos um asiático de 19 anos, virgem, solteiro e, - agora sem óculos - cego, andando pela rua. Falando em catástrofes...

          Termino de me arrumar, praticamente sem conseguir enxergar mais de 1 metro a minha frente. Caminho até o quarto, esbarrando na porta e na cama, e coloco qualquer roupa (que não esteja suja). Junto os óculos e os guardo no armário.

          Pego as chaves e, do quarto até a porta de entrada, me bato inúmeras vezes. Acho que alguém vai ficar roxo, penso.

Saio do apartamento, trancando a porta. Desço as escadas e rapidamente saio do prédio, andando em direção a Biblioteca Municipal, onde trabalho.

Paro para tomar mais café açucarado, numa cafeteria perto de casa, enquanto nos meus fones de ouvido tocam uma música pouco conhecida:

You're all I think about/ Running on the music and night highs/ But when the light's out it's me and you now, now.

Saindo da cafeteria, espero para atravessar uma das ruas de pedras do meu bairro. Nesses momentos, pareço estar em algum lugar da Europa com aquelas ruazinhas e prédios coloridos com sacadas de ferro e janelas brancas...

Então, pela janela do bar do outro lado da rua, eu a vejo. É ela, a menina dos chicletes de canela, CDs gravados e cafés com toneladas de açúcar. A menina por quem eu me apaixonei durante o Ensino Médio, quem eu seguia até em casa e colocava flores dentro da sua caixa de correio.

O tempo congela pelo que parecem anos. Já não existe esse negócio de horas, minutos e segundos. Tudo, simplesmente, para.

...

Como se tivessem jogado um balde de água fria, eu sou desperto daquela viagem no tempo pela buzina de um carro. Inconscientemente, eu tinha movido minhas pernas em direção a ela, porem travei no meio da rua. Tentei andar adiante, porém não tive forças contra as memórias que tinham cabelos crespos e tomavam uísque sem gelo as 8 horas da manhã de um dia da semana.

Peço desculpa, então, ao motorista do carro que me olha como se eu fosse um retardado.

Continuo em direção ao trabalho, mas agora por outro caminho. Até chegar a Biblioteca, sou quase atropelado umas 3 vezes (no mínimo).

Ao chegar, sento-me no meu posto, atrás do balcão, ofegante.

Feliz aniversário, babaca.

HeliantoOnde histórias criam vida. Descubra agora