Vinho Vs. Uísque

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With her wine-stained lips/ Yeah, she's nothing but trouble/ Cold to the touch but she's warm as a Devil

Outro ano. Mais um dia encarando o teto do quarto, esperando que o dia vire noite novamente e eu possa dormir. Mais um dia tendo que acordar, viver, respirar, conviver e mesmo assim me sentir entorpecida, morta e solitária. Encaro o teto, entorpecida desde a alma, sentindo absolutamente nada e desejando sentir tudo.

Me levanto, sem pressa, e vou ao banheiro. Queria dizer que tenho pensamentos filosóficos e que fazem com que eu repense meus conceitos sobre a existência da humanidade enquanto estou no banheiro. Porém, a verdade é que eu só conseguia pensar: como é bom mijar. Sério.

Apesar desses pequenos prazeres da vida, acordar toda manhã, seguindo o mesmo ritual de levantar me sentindo ninguém e ter a dolorosa possibilidade de chegar em frente ao espelho e me perguntar: Quem eu serei hoje? A poeta, romântica incorrigível, a palhaça de circo, a tímida, a independente ou eu mesma? Eu mesma, nunca era sequer considerada uma opção. Hoje, como de costume, escolhi ser poeta.

- Rosas são vermelhas, violetas são azuis, blá-blá-blá... – sussurro, vendo a estranha no espelho repetir gesto por gesto.

Me arrumo, minuciosamente, colocando a blusa azul clara, meus jeans esfarrapados e sujos de tinta, e minha sapatilha de bailarina preta. Deixo meus cabelos soltos, volumosos, com cachos espalhados em todas as direções, fazendo com que meu rosto se perca no meio dos fios desarrumados. Nada de maquiagem. Minha pele negra, estava com um tom de dourado, resplandecente. Me encaro, novamente, intrigada. Pareço uma poeta?

Espero que sim.

Vou, então, até a cozinha, que fica praticamente no mesmo cômodo. Moro em um quitinete, sala/quarto, cozinha e um banheiro do tamanho de uma caixa de fósforo. Ou seja, mi-nús-cu-lo. Abro a geladeira, onde há apenas uma jarra com agua e uma garrafa de vinho branco pela metade. Pego a garrafa, abro e tomo no gargalo o vinho gelado, que desce suavemente pela garganta. O vinho me saúda e eu saúdo o vinho. Bom dia, bom dia.

Termino com a bebida em questão de 2 minutos e coloco a garrafa no lixo. Pego as chaves, a bolsa com tudo que posso precisar (dinheiro, cartão cigarro, isqueiro, caderno, caneta, chicletes de canela, camisinhas, batom...), e saio pela porta.

Dou oi para o vizinho do lado, que me olha de cima abaixo, sorrindo cinicamente como quem diz: eu lembro, você lembra, eu sei que lembra. Babaca. Forço um sorriso e saio o quanto antes dali.

Ando até certo ponto, sem ter noção para onde estou indo. Nos fones, alguma musica toca, mas nem ligo. Acho melhor pegar um taxi e ir direto ao bar. Vou acabar lá de um jeito ou de outro. Entro no primeiro taxi que aparece, indo em direção a Terra do Nunca.

O bar fica no bairro legal da cidade. Parece que eu estou em outro lugar, bem distante, na Europa. Faz parte do cenário artístico de um poeta, tento me controlar mas eu sei porque estou ali. O ar cheira a fumaça dos cigarros e a sujeira. Sento-me num banco alto, de estofado verde, em frente a prateleira de bebidas.

- Bom dia, Helen, chegou cedo. O mesmo de sempre? – pergunta o simpaticíssimo bartender e amigo de anos.

- Bom dia, Julio. Sim, mas sem gelo, obrigado.

Julio olha novamente para o relógio na parede atrás de mim, aonde os ponteiros marcam 7hrs e 15min. Ele dá de ombros e me serve. Uísque, sem gelo. Dou um gole bem grande, que, ao contrário do vinho, desce ardente e amargo. O uísque me comprimenta e eu comprimento o uísque. Bem-vindo, bem-vindo.

Meia hora depois, lá pela ou 5 dose de uísque, eu pego o caderno, a caneta, os cigarros e o isqueiro. Acendo um, abro o caderno e começo a escrever. No início, eram apenas frases mal feitas e pensamentos sem conclusão. Como se a caneta quisesse ir para direita, e eu, para a esquerda. Então, tragando a última baforada de cigarro que ainda tinha, expelindo a fumaça pela boca, criando assim, uma cortina espessa; eu o vejo. Ele está lá, no meio da rua, pedindo desculpas ao motorista que quase o atropelou, Deus lá sabe o porquê. O mesmo menino de anos 5 anos atrás, no ensino médio, perdido. O mesmo por quem eu fui apaixonada durante a vida toda, desde o jardim de infância. O mesmo que eu nunca consegui chegar perto, por ele manter suas paredes altas, como grandes muralhas. Ele. Foi por causa dessa paixão infantil e reprimida que eu comecei a escutar essas músicas, a pintar e escrever.

A caneta que antes se opunha a mim, agora trabalhava ao meu lado, deslizando pelo papel. Eu escrevia furiosamente, hesitando pouquíssimas vezes. Foi então, que eu olhei para fora novamente. Ele se foi. Obvio, ele não iria ficar parado ali para o resto da vida. Esperta.

Meu coração estava acelerado por causa da mudança repentina de paisagem lá fora. Vê-lo de novo me faz sentir como se estivéssemos de volta aos meus 14 anos de idade, nada mudara. Nada mudou, digo para mim. Mas o cigarro recém acendido e o garçom servindo-me mais um copo de uísque, me trouxeram de volta a realidade.

Tudo mudou.

Termino o ultimo copo num gole só. Levanto-me, tonta por causa da bebida, inebriada por causa do sentimento. Sentimento. Que ironia. Guardo então meu caderno, agora com mais algumas folhas escritas. Dou tchau ao bartender, dou adeus ao uísque e me despeço da alma poeta que me acolheu hoje pela manhã. Eu me torno apenas isso, eu mesma. A mais assustadora das máscaras cai sobre mim. A verdade. Saio correndo porta a fora, tentando ver se encontro-o em algum lugar, mas não o vejo. Ele se foi, meu eu sussurra. Certamente, ele já foi faz tempo. Decepcionada, vou para o centro da cidade, percebendo que já são quase 11 horas da manhã. Como o tempo passou tão rápido?, eu me pergunto, triste.

Continuo caminhando com passos ligeiros e tortos, com a cabeça a mil. Preciso de silêncio, preciso de silêncio. Para onde as pessoas vão quando precisam pensar? A igreja? Rio, ironicamente. Não, igreja não. Ao parque? Mas está muito quente, agora que o sol se dispôs a brilhar no céu. A biblioteca? A biblioteca!

Aumento a velocidade de meus passos. Chego aos degraus do prédio antigo no centro da cidade e abro a porta, entro. Lá dentro, a iluminação é acolhedora e, imediatamente, começo a me sentir sonolenta. Paro na recepção, para falar com a atendente, fingindo estar procurando um livro. Ela me indica a estante e eu quase corro para lá. Pego um livro e me sento em uma das mesas na mesa mais longe, no canto, exausta.

Começo a folhear as paginas, mas minha mente ainda não aquietou-se. Ponho o livro de lado e encosto minha cabeça na mesa. Sem perceber, acabo dormindo.

Pouco depois, alguém me cutuca. Levo um susto e já abro a boca para reclamar.

- Pra quê isso? As pessoa não podem mais nem dormir em paz...

Então, eu olho para a pessoa que me acordou. Não era possivel

No corredor, eu paro, abruptamente. Não é possível. Não pode ser. Ele levanta as sobrancelhas, surpreso. E então, ele ri, como se, como eu, não acreditasse no que havia acontecido.

Ele.

- Oi, Helen – disse ele, corando.

Ele lembrava. Ele lembrava de mim!

- O-oi.

Ele me observa de um jeito estranho, e então, nossos olhos se encontram e tudo que eu consigo pensar é na frase que escrevi menos de uma hora atrás:

"Talvez, tudo em mim, tenha um pouco de ti".


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