Desequilíbrio Verbal

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I've been falling, crashing, breaking/ and all the while you were/ stood here waiting/ for me girl

Não sou ninguém. Apesar do nosso finito tempo aqui na Terra, acreditamos que somos invencíveis e imortais, deuses; senhores do tempo e de nós mesmos. O impressionante é que apesar do nosso ego ser imensurável, uma única pessoa é capaz de fazer com que tudo isso desapareça. Viramos altruístas, mortais, fracos e apenas o que somos: seres humanos, fadados a viver e amar; amar e doar-se; doar-se e doer-se. E essa é a coisa mais preciosa que podemos nos permitir: amar.

Não sou ninguém, mas naquela hora tornei-me alguém. Alguém que já não sabia mais como contar os segundos que passavam-se no relógio, que tinha que me lembrar de como respirar. Inspire primeiro, depois, expire. Ou seria ao contrário?

Não sou ninguém, porém, com toda certeza, ela era alguém.

- Quanto tempo... –digo a ela, enquanto ela me olha com aqueles olhos enormes e castanhos. Sempre associei os olhos dela com uma xicara de chocolate quente no inverno: afogueado mas agradável; tempestuoso, porém suave.

- Ainda lembra de mim? – pergunta ela, espantada com o fato de eu reconhece-la.

Eu lembraria de você mesmo se eu tivesse perdido a memória. Há coisas que ficam guardadas além do coração e da mente. Há coisas que são marcadas na alma com ferro quente, inesquecíveis.

- Claro que eu lembro, Helen. Nós estudamos a vida inteira juntos.

Ela sorri, com aquelas covinhas que a tornam angelical, e coloca o cabelo cacheado atrás da orelha.

- Que bom...

Fico sem saber o que falar. Pergunto o porquê dela estar ali? Não acho que seria uma boa ideia.

Antes de eu vê-la deitada na mesa, dormindo, eu tinha ido tomar um café perto da biblioteca. Três colheres de açúcar, como sempre. Manias, manias. Pensar nela sempre me trouxe de volta as manias que eu observei, mesmo que de longe, a minha vida toda. O chiclete de canela, que compro de tempos em tempos; as músicas que escuto, as coisas que vejo, os olhos que observo, as pessoas que toco...Tudo é resultado dela.

É como matemática, nunca muda. Os números mudam, mas isso não altera a forma com que o cálculo é resolvido, sendo assim, a ausência dela ou a sua presença, nada alteraria no resultado final que estamos acostumados a fazer:

AMOR + TEMPO = LEMBRANÇAS

LEMBRANÇAS – RECIPROCIDADE = DOR

Não sou a melhor pessoa para falar de matemática, sei disso. Mas, tudo acaba em dor. Se acaba, é dor. As manias que tenho comigo, são inteiramente parte de um processo de observação, apenas. Açúcar, canela, discos, olhos. Nada está diretamente ligado a ela, contudo, tudo é dela.

- Vitor... – sussurrou ela.

Opa, por quanto tempo eu fiquei viajando? Às vezes, isso acontece comigo, mais frequentemente do que eu gostaria.

- Desculpa, me perdi aqui.

- Percebi – riu ela – Então, você estava falando algo sobre matemática e açúcar...

Droga.

- Ah, é... Eu, ahn, eu... – Merda, eu estava gaguejando.

Ela riu, de novo, e chegou mais perto, levantando-se.

- Você quer... – começou ela, meio apreensiva - ...ir tomar alguma coisa?

Ela cheirava a álcool, tabaco e canela. Estranho, o cabelo dela tinha...

- ...Cheiro bom – murmurei.

- Ah, obrigado – falou, corando enquanto desviava o olhar.

Merda, de novo.

- Você falou algo sobre tomar alguma coisa?

- Falei.

- Vamos, ainda estou no meu intervalo.

Ela me olhou diretamente nos olhos, me analisando. Assentiu, e saiu andando na minha frente.

Gostaria de dizer que fui ético, centrado e totalmente gentil. Mas, cara, eu olhei para a bunda dela, se você quer saber. Sabe todo aquele blá-blá-blá do inicio? Eu, homem, mortal? Então.

No meio do caminho, ela olha para trás, rindo, e pergunta:

- Você vem, ou não?

Ando até ela e depois, ao lado dela, saio pelas portas antigas da biblioteca municipal.

Ela me olha, com expectativa e indaga:

- Aonde vamos, Capitão?

- Depende, o que você quer beber?

Sinto que fiz a pergunta errada. Ela me olha, de cima a baixo, e um sorriso se forma no rosto dela, nesse momento, nem as covinhas ajudam a tornar sua fisionomia angelical.

- Não posso – digo.

- Ah.

- Vamos tomar um café, então, Sr. Responsável. – acrescenta ela, pouco depois.

Eu a sigo, até chegarmos ao café que eu estava há pouco tempo atrás. A balconista levanta uma sobrancelha, mas não diz nada.

- Quero dois cafés, por favor – pede Helen.

- Pode deixar – diz a atendente.

Helen senta na minha frente, numa mesa feita para casais, no canto mais longe do local.

- Então, Vitor, como você está?

- Ótimo. E você?

- Maravilhosa.

E acaba aí. Ficamos em silencio, por um bom tempo. Ela estava distraída, olhando para a janela, com os olhos tristes.

- O que foi?

- Nada.

Suspiro. Ela suspira.

- Queria ter te conhecido antes. – diz ela, do nada.

Congelo.

- Mas você me conhece desde criança, Helen.

- Não, digo, conhecer, ser amiga. Eu nunca conversei contigo, Vitor, nunca. E eu queria não ter te deixado de lado, como todos fizeram. Desculpa, mas foi assim, você deveria ter tido algum amigo, alguém pra conversar contigo e te ajudar. Eu sei como isso dói. – diz ela, com a voz falhando no final.

Eu engulo, tentando desmanchar o nó em minha garganta e lembrar-me que ela está bêbada. Queria que não estivesse, desejo interiormente.

- Mas tá conversando agora, não é?

- É diferente.

- Por quê?

Ela suspira e eu entendo. Eu queria ter conversado antes também, quando tudo era mais fácil. Quando erámos crianças.

O café chega, interrompendo-nos.

Ela me observa colocar, automaticamente, três colheres de açúcar.

Ela ri, me olhando diretamente nos olhos.

- Acho que se tivéssemos a chance, teríamos nos dado bem.

Você não sabe o quanto, penso.

HeliantoOnde histórias criam vida. Descubra agora