Se eu errar é porque sou humano

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Acordo assustado, apertando meu cobertor imundo contra o corpo. Ouço alguns risos, e não entendo o por quê nem sei de onde vêm. Sinto meus dedos indicador e polegar esquerdo arderem, e quando vejo, estão sangrando. Dormi apertando firme minha aliança entre os dedos. Acordei chamando por Lila.

    Ah! Então é por isso que ouço risos. Fixo meus olhos sonolentos num ponto um pouco distante, no fundo, bem no canto da estação. Três idiotas rindo de um homem como eles. Pra que isso? Não vejo diferença alguma. Talvez a única diferença seja que um dia eu tive uma família.

    Você tem uma família, uma voz sussurra em minha mente.

    Será que é Deus? Ou é só o meu subconsciente? Ouço outro riso áspero. Argh! Quero cuspir na cara desses desgraçados! Meu futuro está nas mãos do Soberano. Meu presente você bem sabe. Mas meu passado... No passado eu fui gente. Talvez não o homem que deveria ter sido, mas fui alguém. Alguém muito amado, se quer saber.

    Olho para a minha aliança, ainda fazendo meus dedos arderem em sangue, e escondo a mão debaixo do meu cobertor imundo. Eu moro nessa joça há mais de treze benditos anos, e nunca usei minha aliança no dedo ao qual ela pertence, por medo. Medo de ser roubado. Medo de mim mesmo, que num momento de loucura, poderia facilmente tê-la trocado por duas ou três buchas de crack na biqueira.

    Aperto minha aliança ainda mais forte entre os dedos, sentindo a ardência do contato do sangue com o metal. Ouço o riso dócil de Lila na mente, e uma lágrima cai torturante pelo meu rosto.

    - Se eu errar é porque sou humano. Mas se eu voltar é porque sempre fui seu.

    É como se eu pudesse ver seus lábios comprimidos e trêmulos, esboçando uma felicidade que por si só, já era capaz de encher meu coração. Essas foram as duas frases mais impactantes dos meus votos de casamento. Cada lágrima, cada suspiro... E eu abandonei minha esposa. Abandonei meus filhos. Não cumpri meus votos. Fugi. Fui (sou) covarde. Nunca voltei.

    Será mesmo que eu nunca tenha pertencido àqueles que me deram vida e motivos para vivê-la?

    - Ei, cara!? - grita uma voz ao longe. Sigo o som dessa voz mole de quem fumou todas, e a encontro. É um dos três idiotas, sentado no meio dos outros dois, num ponto desfocado da minha visão sonolenta. - Levanta daí, pô! - grita ele, gesticulando. - Para de chamar essa puta porque essa aí já tá é dando pra outro macho! - cospe com desdém, ao que os outros dois imbecis riem. Sinto a adrenalina correr por minhas veias. - Levanta esse rabo daí, bro! Ela te esqueceu! Já era!

    Deus me livre uma coisa dessas ter acontecido! Mas a verdade é que eu saí para trabalhar num dia e nunca mais voltei. Então tudo bem se, em algum momento nesses catorze anos, Lila tenha me dado por morto e... me traído, né? Não, não, NÃO! Eu não aceito isso! Não uma coisa dessas! Essa não é a Delila que eu conheci. Não é a Delila que amei, e espero que (não é!) não seja a Delila que ainda amo.

    Afundo a aliança em meu corte ensanguentado no polegar, e depois a afundo no fundo do bolso da minha velha calça social preta e suja. Passo a mão por cima do bolso para me certificar de que ela está realmente lá. Está. Levanto muito a contragosto, tonto, cansado, com fome e com sono. Agarro meu cobertor cinza de imundices ao meu redor, e decido cair o fora daqui.

    - Está fugindo por quê, ô marica? - a mesma voz de taquara rachada grita, e os outros dois bobocas caem na gargalhada.

    Mas que droga é essa que deixa a pessoa engraçadinha assim? Não, dessa vez ele foi longe de mais! Ninguém me chama de marica! Chuto meu cobertor imundo de lado e me viro abruptamente de costas. Dou de cara com o banguelo fedido e maltrapilho que gritava. Ligeiro ele, não?

Nuvens de algodãoOnde histórias criam vida. Descubra agora