Quem te ensinou a tocar piano?

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As nuvens se beijam.

    No silêncio da noite, fazem amor. E em picos de alegria, o céu se ilumina, trazendo por dois segundos a luz do dia. Meu corpo se arrepia. Me levanto num pulo, deixando o Sr. Fritz Dobbert sozinho no centro circular. Subo as escadas devagar. E apesar do medo de levar um raio na cabeça, dou dois passos em direção à chuva.

    Eu sei, é loucura. Mas por que evitar? Por que não adentrar o território sem medo de ser feliz? Corro para o meio da praça, atrás do Palácio da Justiça, enquanto muitos outros mendigos vão se abrigar na estação. Um estalo me bate na mente, lembrando-me que deixei minha sacola lá embaixo, mas duvido que alguém a encontre. Não importa. Agora, eu só quero sentir o ácido da chuva queimar meus lábios, rasgar minha pele. Deixo com que a chuva me ampare, me acalme. Danço como em Cantando na chuva, só que sem guarda-chuva nem chapéu. Com a cabeça ao léu. Me faz esquecer tudo. Traz tudo de enxurrada. Grito. Pulo. Rodopio. O que é estranho, pois isso não é da minha personalidade. Mas acho que todo mundo tem aquela necessidade de extravasar, às vezes.

    Ouço uma voz fraca chamar o meu nome. É uma voz familiar, mas pareço estar sozinho aqui. Deve ser minha imag-

    - Devon.

    Glória.

    Viro-me para aquele mesmo cantinho onde a encontrei há algumas semanas. Glória está ensopada e tremendo. Deve estar faminta.

    - Glória - sussurro, ao me agachar ao seu lado -, você está bem? Vamos para a estação?

    Ela apenas assente, e eu a tomo em meus braços. Olhando para ela por esse ângulo, sob essa luz alaranjada dos postes, ela parece ser mais idosa. Exceto por seus olhos, Glória é uma versão mais velha e fraca da Dona Dave.

    Beijo sua testa.

    - Está tudo bem. - sussurro em seu ouvido, o que a faz cooperar mais com o fato de eu ter de carregá-la. Desço as escadas escorregadias com muito cuidado. Atravessamos a catraca. Há mais de cem mendigos aqui embaixo. Algo em mim paralisa. O meu corpo todo, claro. Glória nota minha tensão, e pergunta o que houve. - Nada. - tento tranquilizá-la. - É  que...

    É que, o quê?

    - Por que você não toca uma música para todos nós? - Silêncio. Eu ouvi isso mesmo? - Tudo bem, eu sei que você toca.

    Todos aqueles sons misteriosos no silêncio da noite, aqui na Estação Sé. Glória.

    Sorrio.

    Sento Glória num canto, a alguns metros do Sr. Fritz Dobbert, e ela acaricia minha face em agradecimento. Retribuo sua força. Olho ao redor, para todas essas pessoas - jovens, homens, mulheres e idosos -, e penso em todos os possíveis motivos que os trouxeram até aqui. Assim como eu, ninguém se senta com frio e fome na Estação Sé, no meio da madrugada, por vontade própria. Essas pessoas precisam de uma luz e esperança. Precisam de calor humano, mesmo que através dos cálidos dedos do sr. Fritz Dobbert. Uma pontada no peito, e sem avisos, começo a tocar Nuvuole Bianche, de Ludovico Einaudi. Eu sei que o céu está preto-cinza, e chorando, e amando. Mas no ápice da loucura, todo mundo precisa de certo nível de ilusão. De nuvens brancas. Nuvens de algodão.

    Sinto cento e tantos pares de olhos fitados em mim. Ouço risos alegres e choros emocionados. Sou eu. Um dos que pranteia. Porque a natureza da imensidão é vasta. Eu toco hoje. Toquei ontem. Tocarei amanhã. Mas a vida não tem sentido. Não mais. Mesmo que o céu ame as nuvens até se desmoronar por completo, mesmo que o outono seja perpétuo, mesmo que haja seres humanos dignos de serem amados, eu não esto em casa, nos braços daqueles a quem pertenço.

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⏰ Última atualização: Feb 10, 2017 ⏰

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