Não é tarde para você, assim como não é tarde para mim

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Pleno verão, e o vento sopra fresco como se fosse outono.

     Meu edredom imundo faz falta agora.

     Tentei ficar longe do Sr. Fritz Dobbert a noite toda, para poder contemplar o céu estrelado e recepcionar o sol da manhã, mas conforme as estrelas caíam e a lua ia dançando em direção ao oeste, sentia, no fundo do peito, uma agoniazinha de saber que aquele piano estava sozinho lá embaixo, exposto para qualquer um tocá-lo. Tá, eu sei que sou um estranho, mas eu sei que aquilo não é um brinquedo, e sei tocá-lo. Sei que aquele piano lá embaixo é a linha tênue entre a vida e a morte, e talvez aquele piano seja o meio - o espelho - capaz de me deixar ser algo nesse intermediário.

     Meu reflexo. Minha alma. Tenho que dividir o Sr. Fritz Dobbert com umas milhões de pessoas que passam por essa estação todos os dias. Merda.

     Vou devagar até a padaria do Seu Joaquim, para tomar um pingado e comer uma coxinha. A essa hora da manhã (por volta das 8hs) já deve estar lotado de gente nos balcões, os pinguços e fumantes, principalmente. Hoje é sábado, mas nem por isso o fluxo de gente aqui na Sé está menor. Parece mais é lotado de gente que não tem o que fazer e veio até aqui só para dizer que andou de metrô uma vez na vida. Uau!

     Paro do lado de fora da padaria com aspecto de buteco, que tem uma placa vermelha da Coca-Cola no alto, com os dizeres: "Padaria do Seu Joaquim". Eu frequento essa padaria há pouco mais de vinte anos. Todo dia, eu pegava o trem, o metrô, descia aqui na Sé, parava na padaria do Seu Joaquim para comprar um pingado, e ia tomando à caminho do trabalho, que ficava a alguns minutos daqui. Eu nunca fui de fazer amizades, então eu só olhava nos olhos do velho que eu supunha ser o tal Seu Joaquim e dizia: "O de sempre". Jogava duas notas de dois reais no balcão, pegava o pingado e ia embora. Sempre assim. Todo dia. Hoje, a Padaria do Seu Joaquim é um oásis, mas eu sei que não sou muito bem vindo lá. Claro, idiota! Onde mendigos são bem vindos?

     - Bom dia. - digo, ao me sentar numa banqueta vaga, no fim do balcão.

     - Bom dia. - diz o Seu Joaquim, parecendo apreensivo.

     Ele já me conhece de vista, pois venho aqui quase todos os dias, mas eu nunca me sento. Ele deve estar achando que eu vou assaltá-lo, só pode.

     - O de sempre. - acabo dizendo ao invés.

     - O de sempre. - repete Seu Joaquim. - Sabe - Ele vai até a estufa e põe uma coxinha no prato. - , eu conheço essa frase, e não é de hoje, não. - E põe o prato no balcão, à minha frente. Fica me encarando. - Essa entonação também.

     - É comum as pessoas dizerem isso. - digo, dando de ombros. - Um pingado, por favor.

     Então Seu Joaquim se afasta, prepara o pingado e me entrega. Ignoro o mundo nessa manhãzinha fria e tomo café da manhã. Observo as pessoas ao meu redor, de soslaio. Hoje ninguém parece se incomodar com a minha presença. Na verdade, nem parecem me notar. Perfeito. Seu Joaquim nota que terminei de comer, e se aproxima, pega o prato e o copo. Agradeço e lhe dou a nota de vinte. Seu Joaquim vascila o olhar entre mim e a nota.

     - Onde conseguiu isso? - pergunta, erguendo a nota.

     - Isso não importa. - respondo.

     - Mas é claro que importa, estou perguntando.

     - Isso - digo, apontando para a nota em sua mão. - foi um voto de confiança. É honesto. É meu. Por favor, acredite. - Ele parece aceitar quando imploro. Me dá o troco e continua me encarando. - Posso usar o banheiro? - mudo de assunto.

Nuvens de algodãoOnde histórias criam vida. Descubra agora