Toque-me, sou teu

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O que faz uma pessoa que perdeu a família, ganhou uma logo após, constituiu outra com o passar do tempo, mas então perdeu uma delas, e descartou a que lhe sobrara? Se mata de vez? Ou apenas se isola? Eu não me matei. Eu morro todos o dias. Matei foi minha família, quando dei um leve beijo nos lábios da minha esposa, abracei meus filhos, disse que os amava e nunca mais voltei.

    Meu pai, minha mãe, minha avó e quem mais se foi no decorrer desses catorze anos, e eu não sei, estão mais calmos que eu. Não veem, não ouvem, não falam, não sentem... Não fazem nada. Eu aqui, vivo - que vê, ouve, fala e sente (sente tudo) -, sou um morto perante a sociedade e talvez morto até perante os meus. Ou mesmo morto perante Deus. Um lindo chiuaua duma madame que desfila pela Avenida Paulista é muito mais gente do que eu mesmo sou. Muito mais fiel, também.

    - Fiel! - desdenho, sem ver, ao que uma velhinha que passa por mim se assusta e desvia o seu caminho.

    Já está tarde. Por volta das 23hs. Passei a tarde vegetando aqui, fazendo companhia para o engraxate e o jornaleiro. Estes dois aqui são fiéis. Na praça há noventa e um anos. Eu, há quase catorze. Não há como comparar nossas formas e motivos para ficar ou partir. Eu fugi. Não há explicações.

    Há um brilho no céu hoje à noite, e as estrelas suspensas em sua gaze fina preta opaca parecem reluzir mais que o normal. Por que? Resolvo deixar o engraxate e o jornaleiro à sós nessa bela noite fresca, enquanto aproveito o pouco movimento que há nas ruas para divagar. Eu queria poder passar a noite toda aqui fora e contemplar esse céu limpo até que o Sol chegasse, mas o mundo já não é mais um paraíso. Sim, eu sou um mendigo, mas não, não sou um cara da quebrada que sabe se defender de todos os tipos de situações. Preciso voltar para a estação.

    Andando devagar... Contando meus passos.

    Ai, Lua!
    Se você tão somente pudesse me entender!
    Ó estrelas!
    Por que estão brilhando tanto hoje?
    Logo hoje que me sinto um lixo
    Mais podre do que nos dias comuns
    Por que o céu está tão feliz?

    Não há ninguém na estação agora além de mim. Tudo está tão silencioso que chega dar medo. Passo a catraca e daqui vejo uma espécie de guarda-roupa encostado no beiral circular, ao meio. Estranho. Dou mais alguns passos, passando ao lado de esmalterias e lojas de sapatos fechadas, e então a imagem marrom-avermelhada começa a fazer sentido. Vou temeroso em sua direção, com medo de que o que estou vendo seja só uma miragem. Estico a mão para erguer a tampa, e vejo que estou tremendo. Por favor, seja real. Por favor, seja real. Então vejo uma linha reta, preta e branca. Trinta e seis teclas pretas. Cinquenta e duas teclas brancas.

    Eu não estou enxergando direito.

    Isso só pode ser uma miragem. Um sonho. O que for.

    Mas é o nome Fritz Dobbert, gravado em dourado no lado interno da tampa, que me faz pensar de que talvez, a pianola a minha frente seja real. Afasto o banquinho marrom-avermelhado estofado (que está atado à perna do piano por uma corrente) e me sento. Solto o ar que nem notei ter prendido ao sentir as teclas frias de marfim nas mãos. É real. Aqueço-as em mim. Aqueço-me nelas. Meus dedos instintivamente vão para suas teclas de posição, e se preparam para Aeolian Harp.

    Três. Dois...

    - Sim, eu toco. - disse, olhando para Delila. Era impossível não sorrir.

    - Uau! - exclamou ela, e voltou a se recostar no banco com sombra fresca. - Como aprendeu? - levantou novamente, virando para mim, os belos olhos negros brilhando.

Nuvens de algodãoOnde histórias criam vida. Descubra agora