Você passou tanto tempo fugindo que esqueceu para onde estava correndo

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Sabe quando tudo gira? Quando o mundo parece dar piruetas sem parar, como uma criança que se entupiu de açúcar e cafeína, à noite? É assim que processo tudo, quando mais uma manhã chega, e esse formigueiro chamado Estação Sé se enche de gafanhotos.

Então eu começo a girar. Ao ver esse formigueiro ser tomado, só consigo me lembrar duma frase que ouvi uma vez, numa série de TV, chamada Lost: "Você passou tanto tempo fugindo que esqueceu para onde estava correndo."

Correndo, pulando, saltitando na frente de todos eles, a todo momento, nesses cinco mil duzentos e noventa e dois dias e meio. Por dentro. Diante dos olhos de todos eles, mas eles simplesmente parecem não ver.

Exceto, apenas, daquela que olha em meus olhos e pergunta, com sua franqueza desinibida:

- Seu Soares, se o senhor pudesse comer algo agora, o que seria?

- Cachorro-quente. - solto, sem ver.

- Então vamos! - ela exclama ao saltar do banquinho do Sr. Fritz Dobbert.

- Aonde? - Meu cérebro dá pane.

- Comer cachorro-quente, oras!

- El...

- Vamos. - sai baixo e suplicante, acompanhado dos olhos de piedade do Gato de Botas.

Rio comigo.

Eu a acompanho, à medida que me pergunto em silêncio que espécie de anjo é esse, que toca belas sonatas no piano para mim, quando meu coração está aflito; me alimenta quando sinto fome; sorri para mim, quando todos fecham a cara; a única que nota a minha presença e vem ao meu encontro, quando todos se desviam do meu caminho.

Sendo quem me tornei. E essa menina parece não se importar com o modo depreciativo com que a sociedade me vê.

E eu a sigo, como um cãozinho de rua segue um ser humano de aroma honesto e bondoso, pelas ruas e semáforos sem fim. Até El entrar numa lanchonete clara e limpa, de vitrines brilhantes e garçonetes uniformizadas. Como é de se esperar, eu me espanto ao contemplar a tentadora ideia de partir, sem nem nunca me lembrar que El existiu, mas a própria se vira para mim, suspirando sorridente, só por me ver lá.

- Ô, sai daqui! Nós não vamos te dar nada! - berra a garçonete para mim.

Mas quando vou em direção à porta, El segura o meu braço.

- EI! - El berra mais alto. - Ele está comigo. Mas quer saber? Não precisa se preocupar, não. Nós não precisamos do seu cachorro-quente temperado com mau humor, falta de educação e falta de humanidade. Você deveria se envergonhar do que acabou de fazer. - El esbraveja, fuzilando a garçonete com o olhar, que por sua vez, fica desconcertada ao ver que alguém sabe berrar mais alto. - Vamos, Seu Soares. - ela solta o meu braço e dá as costas para a garçonete Nariz na Lua, voltando a subir a Tabatinguera.

Nem ouso olhar para a Sra. Coração Peludo. Sigo El.

- Não se preocupe, Seu Soares. Nós vamos comer cachorro-quente.

Seus olhos, escuros de ódio há pouco, se abrandam quando toco de leve seu braço.

- Filha, não se preocupe com isso. Sério. - sussurro.

- Mas eu quero.

Não a contrario.

Voltamos a perambular, até encontrarmos uma barraquinha de cachorro-quente em frente à Catedral, na Praça da Sé.

Um cachorro-quente para cada, uma limonada de garrafinha, dois copos descartáveis, e o sorriso de El volta a resplandecer como o Sol das manhãs.

- Mas que humor instável é o seu, não?

- Rá! - ela solta um riso alto, engasgando com o cachorro-quente, e tossindo. - É o que o meu irmão caçula diz. Vou contar para ele hoje que ele não é mais o único que pensa assim.

Rimos.

El abre o suco, enche os dois copinhos, me dá um, e depois de dar uma boa golada no seu, suspira e fica me observando.

- De verdade?

- Ahn? - olho para ela.

- Quer saber, de verdade, por que perdi as estribeiras com a garçonete lá? - E a simples menção dela traz três rugas à sua testa.

Assinto.

- Eu não suporto ver imbecis, que têm condições de pôr comida na mesa os trinta dias do mês, ridicularizar quem não tem nem onde deitar a cabeça. - ela desvia o seu olhar do meu. Agora sou eu quem não consegue tirar os olhos dela. - Desculpa, Seu Soares. - El chacoalha a cabeça. - Eu não quis constranger o senhor. - E seu olhar cintilante e inocente volta a fitar o meu. - Juro que me controlei para não xingar a mãe dela.

E sou eu quem engasga, agora.

Eu mal conheço El, mas acho incrível a maneira como ela diz algo tão engraçado dum modo tão sério. Quando volto a tomar fôlego, sem correr o risco de que um pedaço de salsicha possa me entalar, volto a encará-la, como um pai encara o filho. Ela sabe que esse é o meu jeito de dizer obrigado.

- Você... ahn... não está atrasada? - desconverso e tomo um gole de limonada.

- Ah, não. - sorri. - Hoje, não.

- O que você faz, afinal?

- Pesquisas. - assente. - Faço pesquisas.

E é nesse momento que passo a compreender algo: não importa o quão bondosa El possa ser, entre ela e eu há uma barreira invisível, onde encontra-se a seguintes palavras pichadas: NUNCA FAÇA PERGUNTAS PESSOAIS.

Está bem, eu respeito isso. Porque no final das contas, estar sentado ao seu lado, nas escadas da Catedral, comendo cachorro-quente e tomando limonada, ao lado de vários outros mendigos, com esse Sol fresco matinal na cara, é bem mais do que eu mereço.

Nuvens de algodãoOnde histórias criam vida. Descubra agora