Nem todas as verdades são para todos os ouvidos

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Sinto minha língua estralar.

    A ponta da minha língua pinica, e inconscientemente, começo a me lembrar dos melhores doces que já saboreei na vida: manga, doce de abóbora, pudim de leite condensado, sonho, música, piano, violino, os beijos de Lila, o abraço de Hannah, a risada de Hugo, o olhar da Dona Dave, o carinho da mamãe, a proteção do papai, nuvens, algodão, céu azul, o outono, o fôlego de vida.

    Minha língua estrala novamente, lembrando-se do doce de cada um deles, sempre atrelado ao azedo, ao salgado.

    Ao amargo.

    É quando o silencioso vento noturno e as frias mãos do Sr. Fritz Dobbert me trazem uma canção doce. Tão doce que faz gotejar uma calda caramelada nas pontas dos meus dedos. O silêncio entre as notas. Um filme meio sem sentido e cliché, confesso: Uma proposta perfeita. Um cara querendo uma promoção no trabalho, que acaba se apaixonando pela dançarina lindinha, largando a fresca da namorada.

    Tá, tá. Todo mundo conhece o final. Mas o ponto não é esse. O ponto é que, quando o Sr. Promoção e a Dançarina Lindinha dançam juntos, uma canção doce - tão doce que é capaz de derreter o coração em calda de açúcar - toca. Um dueto de piano e violino. Não é preciso ser muito inteligente para perceber que, enquanto o piano tenta manter a postura de sério - com o coração estilhaçado -, o violino prantea, sem medo de ser julgado.

    Aperto mais os olhos fechados, ao vento que causa arrepios por todo o meu corpo, e vejo minha Lila de sapatilhas cor da pele - como se estivesse descalça -, tirando os pés suavemente do chão, ao tocar a canção mais doce do favo. Eu via que ela sangrava em compreensão e euforia. Via que, por algum motivo - talvez pela beleza singela e pura em si -, ela queria chorar. Então eu também sangrava por dentro - junto com ela - junto do marfim e das cordas, quando um brilho incolor e inigualável descia lentamente por sua face.

    Nós nunca descobrimos quem é o compositor da doce canção. Mas não saber nunca foi um problema para nós. Escrevíamos o que ouvíamos, e colocávamos os nossos corações na praça para repercutir. Deixávamos os pensamentos rolar, a imaginação fluir. Em meio à todo aquele doce ardente, que queima a alma, fazia doce por ela e saciava a sua calma.

    Olhando para os meus dedos estirados e mudos sobre o corpo de marfim do Sr. Fritz Dobbert, percebo - pela milionésima vez - o quão simples é a vida. Complicado, sou eu.

    Cogito começar a dedilhar a canção doce, mas sinto uma forte pontada - algo apertado - em meu peito, e não é um abraço. Apenas o frio do outono para envolver minhas entranhas e desorganizar meus pensamentos. Como o azedo e o salgado, pois em meu corpo, existem duas precisas definições para o amargo. A mais óbvia é o fato de ser 2h20 da madrugada, e eu estar tocando piano na Estação Sé. A segunda definição de amargo é sinônimo de outra palavra: bastardo.

    Por mim, eu viveria com a minha família pelo tempo que o tempo permitisse e desejaria fervorosamente, todos os dias, que o bastardo - em não importa qual lugar desse planeta - se arrependesse genuinamente, ou morresse logo e pagasse pelo que ele nunca se arrependeu.

    Mas a vida é engraçada, sarcástica e adora tirar uma onda. Foi quando, dos três banheiros de casa, um começou a apresentar problemas: encanamento, piso escorregadio e pia trincada. Resolvemos reformá-lo. Quando a questão é pedreiro (e costureira, como dizia Lila), não existe o ou a ideal. Arruma o melhorzinho que aparecer e torce para ele não acabar de vez com a sua casa ou estourar o seu orçamento, acabando também com a sua paciência. Mas não conseguimos. Passamos semanas atrás de um pedreiro (com super habilidades em encanamento), mas nenhum era o equilíbrio ideal entre talento e preço. Fiquei resmungando à respeito por todos os cantos possíveis, esperando alguém se manifestar: "Eu conheço um pedreiro bom para te indicar!" Foi só depois de mais alguns dias que, enquanto eu revia umas papeladas no meu escritório, ouvi uma voz:

Nuvens de algodãoOnde histórias criam vida. Descubra agora