Certa vez, uma amiga comentou que eu era o tipo de pessoa que para começar a trabalhar precisava ter tudo arrumado ao redor, no caso, a minha mesa. Refletindo sobre, percebi que era verdade. Uma característica pessoal que me ajuda a ter concentração e criatividade. Sendo assim, ao observar meu ambiente de trabalho (o quarto), notei que ele estava muito bagunçado. O que explicaria a minha falta de inspiração nos últimos dias. Separei um tempo e coloquei tudo em ordem. Agora era só aguardar que as ideias iriam surgir como uma avalanche. Nada. Nem um floquinho de neve desceu pela montanha da minha mente.
Porém o que pude observar, em alto e bom som, foi o silêncio que se tornou notório. Não me importo com ele. Mas realmente, naquele instante, ele me fez sentir que alguma coisa faltava em minha vida. Algo que quando mais nova não poderia faltar. Algo que fazia parte de mim, que era minha melhor companhia tanto em dias alegres quanto em dias tristes: música.
Corri para ligar o som. Que som? O rádio. Que rádio? Naquele momento o vazio me inundou. A sensação de que alguma coisa havia sido tirada de mim sem que eu notasse. Mas quando? Onde? Há tempos não possuía nenhum daqueles aparelhos, tão desejados na década de 90, em casa
Essa situação me fez caminhar pela linha do tempo e lembrar do meu primeiro microsystem. Aqueles que era moda entre os rappers colocarem no ombro feito um papagaio de pirata. Era preto, robusto e na parte superior havia uma tampa que com um clique abria para o cd ser inserido. Uauuuu! Ele era lindo e eu o considerava o máximo. Não precisava de mais nada. Formávamos um par perfeito. Não me recordo em que parte da minha vida esse amor foi levado de mim.
Toda essa nostalgia gerou em mim um senso de justiça e eu precisava culpar alguém. Encontrei o réu ideal em Darwin e na sua teoria evolucionista de que o ser humano se transforma para sobreviver. Em alguns aspectos isto pode ser bastante útil, mas em outros... pode nos levar a deixar para trás velhos e bons hábitos. Como aconteceu comigo, admito, que fui fisgada pela evolução e as novas mídias me afastaram do meu ritual musical particular. Ainda estou surpresa com a sutileza com que isto aconteceu. Ironicamente, há pouco tempo, postei em rede social a seguinte frase de um livro dizendo: "Algo do charme se perde quando a tecnologia entra em nossa vida com sua mania de entregar tudo pronto". Olha quem fala, ops, escreve.
Se você for uma pessoa como meu irmão, já está fazendo cara feia dizendo: "não vejo nenhum problema, pois escuto e compartilho músicas diariamente". Sim, eu também. Entenda, o que quero frizar é que, com os celulares "bombril" e o sistema de "baixação" de músicas pela internet, tudo ficou tão acessível, tão rápido, tão, tão... que foram embora momentos especiais como o de parar; pegar o cd na estante; abrir a tampa do rádio; inserir o cd; fechá-la e apertar o play . Até suspirei ao terminar esta frase.
Viu como era diferente? Trabalhoso, todavia, intenso. Graças ao darwinismo tecnológico, economizamos tempo hoje em dia. Então, o que temos feito com o tempo que nos sobra? Arrisco a responder que acabamos por gastá-lo pesquisando, procurando, acessando, baixando, curtindo e compartilhando. Até cansei ao terminar esta frase.
Enfim, continuei caminhando no vazio da minha mente pensante. Afinal nenhuma avalanche de ideias foi identificada. Contudo, de uma coisa eu tinha certeza, precisava urgentemente ter de volta um rádio em casa.
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Crônicas Urbanas
SaggisticaHistórias de quem vive e sobrevive na cidade, contadas por duas amigas que moram em diferentes cantos do Rio de Janeiro.