Suzane, 19 anos, bela e rica, matou por amor. #1

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Crime horrorizou todo mundo. Até os assassinos na cadeia chocaram.

Mesmo no mundo do crime há uma ética a preservar, mesmo o pior criminoso tem um interdito moral. O crime de parricídio e matricídio premeditado durante o sono é mais que um crime; é uma viagem ao desconhecido, é o desejo de atingir um recorde supremo. Não há nada pior. Que delito Suzane e seus cúmplices poderiam considerar mais hediondo?

Suzane está no topo, nada há além dela. Ela nos aterroriza com sua crueldade. Os dois monstros boçais ainda dá para entender: queriam grana, motocas e tatuagens, filhos dessa geração de shoppings e violência. Ela, não. Precisamos encontrar explicações para ela, senão ficamos ameaçadíssimos. O crime sem motivo nos desorganiza. Se eIa, jovem, bela e rica, matou, que será de nós?

O crime sujo da favela apenas nos dá medo. O crime limpo e rico nos desampara, nos dá vertigem. Suzane nos leva à beira da loucura, mas ela não é louca. Então, ela matou por quê? — perguntamo-nos. Isso é que fascina e apavora no psicopata: ele toca em nosso mistério. Vizinhos e amigos sempre dizem: "Eram doces, educados, tímidos..."

Até a hora em que metralham espectadores num cinema ou matam pai e mãe dormindo. Por isso, os psiquiatras buscam "causas", como se a vida social fosse um contrato de bom senso, como se fôssemos animais racionais e a loucura, um "desvio". É o contrário: a sociedade é que é um desvio. Não adianta ter ódio de Suzane; não há punição que apague o seu crime, não há como pagar sua dívida. O inferno cotidiano que ela terá não apagará aquele momento, sempre além de qualquer entendimento. Mas mesmo os psicopatas precisam de uma razão maior para justificar o crime.

"Matei por amor...", diz a menina de 19 anos, fina, linda, universitária. No entanto, esse amor que a menina invoca é outro "amor". Ela e todos nós precisamos "justificar" esse crime. Ou seja, deve haver um motivo para se matar a mãe. Ela também precisa de um motivo, pois ela não sente culpa porque matou. Ela matou justamente para preencher um grande vazio em seu mundo interno, matou para atravessar um deserto afetivo, matou porque não sentia culpa, matou por vingança de não sentir culpa, matou até para tentar sentir alguma culpa, sentir até algum... amor. Por isso, sua declaração nos apavora: "Matei por amor! " Matou, sim, por amor, para conseguir um pavoroso amor por que ela ansiava. Que estranho amor é esse?

Eu acho que ela buscava o "amor" da hora. É o amor que nos grita de dentro do comércio, de dentro do consumo, que nos chama de c dentro de um narcisismo impossível de ser satisfeito, um amor que consome tudo, querendo uma felicidade absoluta, com a abolição de todos os vínculos, todas as barreiras do "Édipo", todos os deveres sociais, Suzane quis fazer um gesto imperdoável para sempre, absoluto, livre para sempre da condição humana, quis o sangrento incesto invertido com os pais deitados na cama onde Ia foi (talvez?) feita. Esse crime seria uma espécie de conquista de Poder, sim, o poder de estar acima dos sentimentos, da justiça, o poder de viver sem ;sociedade em volta, um poder maluco que vemos anunciado nas entrelinhas das ideologias de hoje, nas gargalhadas sem remorso nas revistas, na abolição descarada da compaixão, na promessa da satisfação total, na fome de ter "tudo", O poder de liberdade crua que Suzane almejou me lembra o poder que os Macbeth conquistariam, depois de "assassinarem o sono".

A frase da peça que mais me aterroriza é quando lady Macbeth, preparando-se para o crime, grita a Deus ( ou ao demônio) : "Unsex me!" ( "Dessexualize-me !") Ou seja: "Tire de mim a bondade feminina, transforme-me não num homem, mas tire o sexo de mim, para que eu seja um ser livre da diferença, livre da condição humana dividida e me transforme num ser monobloco, com um desejo só." Como seria o amor de Daniel e Suzane, "Romeu e Julieta" ao contrário, se tudo tivesse "dado certo"? Com os pais mortos, grana no bolso, garupa de motocicleta, os dois teriam uma espécie de fusão, de orgasmo contínuo, acima da vida, acima do cotidiano, pois ninguém mais poderia existir — só eles. i A sociedade está tão narcisista, tão excludente de qualquer solidariedade, tão brutal no seu desejo de satisfação, que contamina até os privilegiados. A pulsão de morte anda solta. Vivemos atacados pela brutalidade do noticiário, pelos homens bomba, pela estupidez da cultura que gera batalhões de rapazes criminais, sem camisa, obcecados por uma felicidade de consumo impossível. Não somente as balas nos atingem, mas
também a imensa boçalidade da cultura.

Suzane é psicopata, mas nossa sociedade também o é. Não há explicação para esse crime. Não adianta procurar causas, traumas. Esse crime ficará sempre em aberto. Misterioso, como nosso destino.

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