César Augusto, vulgo "Doutor". Tomando café à margem da Rua Engelberto Koerich, nas dependências do Hospital Colônia Santana, São José, SC. Janeiro de 1992.
[Som do trânsito em horário de pico]
Me trouxeram pra cá numa Kombi da prefeitura e me trancaram no banheiro da recepção. Arrancaram minhas roupas e tudo o que eu carregava comigo, menos o gravador. Me enfiaram numas roupas que deviam ser de alguma criança que morreu na época da enchente e ali mesmo começaram a me tratar com umas gotas, que ninguém sabia o que era. Foi nessa época em que começaram a colocar os pacientes da Colônia em uns ônibus e a devolver eles pro interior. Eram deixados nas casas de pessoas que nem se lembravam mais deles. Eu sempre fui um dos rejeitados. A última vez que tentaram me levar pra casa, tua mãe gritou tanto com o médico que ele escreveu na minha ficha que eu não tinha familiares vivos. Vocês me olhavam pela janela do quarto, lembra? Tu e tua irmã... Nunca chorei tanto como naquele dia.
A mãe sempre foi uma puta.
Shhh... Tá gravando.
O que? Não posso falar palavrão? E a "integridade" da pesquisa? Velho hipócrita...
[Risada] Ela teve os motivos dela, você era nova demais pra entender.
Ainda não entendo. Ninguém fala sobre isso. A mãe e a Talita só querem distância, literalmente. Cada vez parece que se mudam pra mais longe, como se isso aqui fosse motivo de vergonha. Tu tinha que ver o jeito que a mãe olhou pra mim quando eu disse que ia te ajudar a terminar a pesquisa... Ela fez uma cara de nojo e disse que isso era 'coisa de demente'.
[Risada]
Eu disse pra ela que tu precisava disso. Mas falando sério? Eu não sei o que tu quer tanto entender com isso. Sempre falando do propósito desses coitados como se de alguma forma tua vida fosse fazer sentido. Mas fica difícil te ajudar se nem eu que sou tua filha sei o que tu tanto procura.
Por que isso é importante? Saber o que eu procuro?
Porque sim!
Se é assim, te digo o que eu disse pra todos que me perguntaram a mesma coisa. Disse que queria ouvir aquelas histórias que não são mais contadas. As histórias daquelas cidadezinhas que conseguiam enterrar a maioria de suas crianças sem derramar uma lágrima. Aquela história que produz mais loucos do que filhos. Eu falava que queria entender aqueles que abandonaram suas famílias e foram atraídos pelos campos, pelos trilhos ou por alguma promessa otimista enterrada na própria merda em que eles viviam e que só eles enxergavam. Acabavam encontrando a loucura no caminho e vindo pra cá. Se eu entendesse o propósito deles, eu dizia, eu poderia descobrir o meu. Mas vou te contar uma coisa... Se você ouvir com atenção, filha, vai ver que essas fitas são sobre coisas muito mais pessoais. São sobre eu e tua mãe. Sobre aquele demônio que dava veneno pra gente e sobre aqueles que passaram a vida inteira trabalhando no mesmo lugar em que morreriam asfixiados. As fitas são sobre todos nós.
[Silêncio]
Muito esclarecedor, pai.
[Pausa para intervenção médica]
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Terra Obscena
Short StoryAs portas deste lugar serão fechadas quando o último de seus internos morrer. Até lá, César pretende escutá-los. Conto inspirado na história do Hospital Colônia Santana, em São José, Santa Catarina.