José Vitorino, alimentando grupo de cães em frente ao Hospital Colônia Santana, São José, SC. Março de 1985.
[Som de mastigação]
Não, não... Muito obrigado.
Não quer mesmo? Olha rapaz, o cheirinho... Sabor "carne de panela"... Tem certeza?
Tenho.
Então tá, né. Tu que sabe. Heh. [Mastigação]
Quantos cachorros você tem?
Hum... Aqui, agora? uns vinte e cinco... Mas no total mesmo uns sessenta, setenta.
Algum motivo para andar com eles?
Gosto da companhia, sabe, me sinto seguro. Cachorro não te trai, só come tua comida, é isso que eu sempre digo. Heh.
Isso tem alguma relação com seus hábitos alimentares?
Tem sim... Ô se tem... Gosto de contar a história, mas o povo não acredita. Minha família me trata como louco por causa disso, sabe como é. Mas larguei a bebidapor causa deles. Eles são meus amigos e salvaram minha vida. Claro, não tomo banho e vivo na rua, tem isso, né? Naquela época, eu não andava sem um garrafão de vinho do lado. Deixava no chão da caminhonete da Celesc e ia matando a sede enquanto meus colegas subiam na escada. Dirigia o dia inteiro, então tu imagina o estrago. Heh. Aquilo começou a me destruir, sabe como é a bebida, né? E o ponto alto da coisa toda foi quando eu entrei com a caminhonete e tudo dentro de uma casa que ficava num nível mais baixo do que a estrada, sabe? Entrei pelo telhado e estacionei a caminhonete em cima da mesa de jantar. A casa tava cheia de gente fazendo festa. Era aniversário de alguém lá e a mesa tava cheia. Só deu tempo de ouvir a gritaria e o que sobrou do telhado caiu em cima de todo mundo. Só ficou a parte de alvenaria em pé, um banheirinho e uma cozinha. Quando a poeira baixou vi alguém saindo do banheiro, uma moça linda, de uns vinte e poucos anos, loirinha, e, sem mentira, aquilo foi amor à primeira vista. Eu estacionei a caminhonete em cima da família dela. Um pneu tava em cima da cabeça da vózinha dela e só tinha sobrado os cachorros, juro por Deus, mas ela não conseguia tirar os olhos de mim. Aí fui preso, né. Fiquei dois meses na cadeia, só. Quando saí, ela tava me esperando com os dois cachorros e uma garrafa de vinho. Catarina o nome dela. A coisa mais linda que eu já vi. Dois meses depois... Capeta. Capeta, senta lá seu cagão... Não liga não, ele vive esfregando a bunda nas coisas... Dois meses e a gente comprou uma casinha na beira da estrada. E de vez em quando eu chamava os parceiros pra jogar uma canastrinha lá em casa e pedia pra mulher preparar uma lasanha que ela fazia que meu Deus do céu. Os caras chegavam e era o maior alvoroço com a cachorrada.E quando chegava a comida a cachorrada ficava louca. O Dante até pulava em cimada mesa, às vezes. O Dante era um, Cecília a outra. Mas aí eu comecei a notar uma coisa estranha. Os caras ficavam meio sem jeito quando eu perguntava se eles não iam comer a lasanha, porque eles ficavam uns dez minutos sem encostar no prato. E eles só comiam quando eu saía da sala. Um dia disse que tava indo dar uma mijada e fiquei espiando os caras e vi eles dando a comida pra cachorrada...Filhos da puta! O sangue subiu, sabe como é. Ninguém recusa um prato de lasanha assim na minha casa. Daí eles chegaram e me chamaram pra perto deles e disseram ô zézo, ninguém aqui come a comida da tua muié. Não é só a gente que percebe que ela quer te envenenar, zézo. Aí tu imagina o baque que foi pra mim aquela revelação, né, porque eu tava apaixonado pela minha Nina. Mandei todo mundo pra puta que pariu. Mas aquilo não acabou assim. Aquilo me deixou pensativo, sabe como é? Paranoico, como diz o outro... Comecei a achar que a comida tava envenenada mesmo. E comecei a emagrecer porque no fim eu não comia mais nada em casa e voltei pra cachaça. Foi aí que comecei a pegar a ração dos cachorros.Era só a Nina virar as costas e lá ia a lasanha pro Dante e pra Cecília. Foi uma troca justa pra eles, né, porque era um banquete todo dia... [Risada] Bom, pelo menos até o dia em que encontrei a Cecília e o Dante duros numa poça de mijo na frente de casa, com a boca ainda suja de minestra. Depois disso nunca mais comi comida de gente e pra mim tá sendo bem normal até. Heh.
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Terra Obscena
Short StoryAs portas deste lugar serão fechadas quando o último de seus internos morrer. Até lá, César pretende escutá-los. Conto inspirado na história do Hospital Colônia Santana, em São José, Santa Catarina.