Genina Barcelos. Lavando pratos na cozinha do Hospital Colônia Santana, São José - SC. Agosto de 1986.
É isso que eu começo dizendo pra eles. Conto essas histórias da minha infância enquanto a gente bebe vodca. Um ou outro sempre me oferece comida, mas eu nunca como. Não suporto essa friturada nojenta, comida industrializada e congelada. Quem sabe o que ele trituram ali no meio? Nós meninas temos que cuidar da alimentação, não adianta. Então a maioria me olha desse jeito, enquanto eu bebo a vodca sem parar e cruzo e descruzo as pernas pra fazer a saia plissada levantar um pouquinho. Eu vejo o desejo nos olhos deles, aqueles olhos vermelhos de álcool e de tesão. Então sempre tem aquele comentário vazio do tipo: tu não faz o tipo de guria que bebe destilado, he, he. Aí eu peço desculpa, né, e digo que a vodca me faz lembrar de umas coisas horríveis e que é só bebendo que eu consigo esquecer.
Eles adoram o sofrimento dos outros, por isso eles pedem pra eu continuar... pra eu me abrir... e o discurso é sempre esse: a vodca me faz lembrar da risada do meu pai, jogando truco e bebendo com meu tio Rói. Quase toda noite, eu passava por eles e meu tio falava: "Tu não devia usá essas sainha curtinha, linda. Vai deixá os menino do bairro louco". E meu pai, quando ouvia isso, batia o copo de vodca na mesa, rindo como um retardado. E era sempre vodca. Meu tio sorria pra mim, do mesmo jeito que ele sorria às vezes na porta do meu quarto, enquanto eu me maquiava ou cuidava dos meus hamsters... Uma mãe e uma penca de filhotes que eu tinha. Um dia, sorrindo daquele jeito filho-da-puta, ele me disse que se eu ficasse um tempo sem dar comida pra eles, a mãe ia começar a devorar os filhotes, só para que eles não morressem de fome. Instinto materno, ele sussurrava no meu ouvido, enquanto esfregava a mão na minha barriga. Eu tive que parar de dar comida pra eles, sabe? Era curiosidade, mas também era outra coisa. Eu sempre fui assim submissa. E meu tio começou a ir todas as noites no meu quarto, depois que meu pai já estava bêbado demais pra perceber que ele havia saído, pra passar a mão em mim e ficar olhando pros bichos. Numa noite dessas, enquanto o tio Rói ainda drogava meu pai na sala, eu comecei a ouvir uns gritinhos e fui até a gaiola. Vi a mãe devorando um filhote, roendo o pescoço enquanto ele se debatia, jogando serragem pra todo canto, e eu não conseguia fazer nada. Tudo era muito selvagem. Os gritos ficaram cada vez mais altos, e cada vez mais humanos. Horrível... Então ouvi meu tio dizendo que eu não devia mexer com a natureza, o som do zíper sendo aberto, aquele negócio quente roçando na minha nuca, enquanto ele falava pra eu ficar quietinha, pra não apanhar do papai... Horrível.
Mas aí... eu não chamava meu pai de papai, né? Ele não gostava de ser chamado assim. Engraçado como naquele momento aquilo pareceu importante. Quando eu ouvi aquilo, eu tive certeza que tava sozinha... Papai, quem? Ele provavelmente faria a mesma coisa que eu fiz com aqueles ratinhos. Ficaria olhando o Tio Rói me comer com aquela cara de desprezo dele... E não é da dor que eu me lembro, porque eu já tava meio acostumada com aquilo. O pior foi sentir o abandono e sentir aquela baba de vodca escorrendo no meu cabelo, no meu pescoço, enquanto ele me beijava. Depois daquela noite, ele começou a me pedir um beijo de boa noite sempre que me via. E meu pai falava vem cá, beija teu tio. Eu me aproximava e ele me pegava pela cintura e me colocava no colo, e eu podia sentir que ele tava com tesão, e toda aquela dor insuportável voltava na hora e meu reflexo era chorar...
E éaqui que o filho da puta se revela. [Risada] Alguns se silenciam, outros balançam a cabeça e juntam as mãos como se fossem padres, os mais viados começam a chorar. Aí nesse caso eu tenho que chorar também, né, santa mãe de Deus! Mas quando o cara me escorrega a mão pelo colo e dá pra ver que ele tá gostando, sabe, daquilo. Do sofrimento... Aí eu deixo ele me consolar e a gente se beija de um jeito tão apaixonado que parece que ele vai me engolir. Então eu digo me come e a gente corre pro banheiro ou pra um beco qualquer. E eu caía de joelhos na frente deles e abria as calças, sempre com lágrimas nos olhos. E todos sempre seguravam minha cabeça com força, e eu não me importava. Só precisava de um centímetro, menos até, e a lâmina do meu canivete fazia o resto. Minha boca se enchia de sangue e eu deixava o jato de sangue arterial lavar o meu rosto. Eles olhavam pro céu e depois pro caralho decepado na minha boca e era questão de segundos até eles caírem no chão, todos. Alguns já entravam em choque, outros ficavam conscientes, mas nunca gritavam. E eu sempre tirava o pau da boca e insistia em conversar com eles. Batia no rosto deles assim, "Ô! Viadinho! Tu toma alguma droga? Otário". A maioria não respondia e ficavam ali, deitados sem sexo numa poça de sangue. Então eu procurava as marcas de agulha, as feridas no nariz e os sinais de DSTs antes de botar o pau na boca de novo... Porque nesse mundinho de drogados e de sexo livre, nós meninas temos que cuidar da alimentação, né? Não adianta.
Vilmar Martins, sala de estudos bíblicos do Hospital Colônia Santana. O entrevistado relatou fatos tão contraditórios de sua própria vida que este estudo não conseguiu atestar a veracidade de qualquer versão de sua biografia. Fevereiro de 1985.
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Terra Obscena
Short StoryAs portas deste lugar serão fechadas quando o último de seus internos morrer. Até lá, César pretende escutá-los. Conto inspirado na história do Hospital Colônia Santana, em São José, Santa Catarina.