César Augusto

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César Augusto, vulgo "Doutor". Pátio da ala masculina, sob a "sombrinha", Hospital Colônia Santana, São José, SC. Janeiro de 1992.

Filha, como eu posso te culpar por ter ido embora? Mesmo durante a convulsão, eu só conseguia pensar em te pedir perdão. Verdade. Aqueles ataques estão cada vez mais comuns. Se tornaram diários e agora até parece que não consigo viver sem eles. Uma pessoa da minha idade não devia viver com esse tipo de preocupação.

A verdade é que chega uma hora em que eu preciso me abrir. É minha doença. Preciso vomitar essas histórias, como se elas pedissem para serem contadas. Às vezes eu penso que é a minha forma de provar que aquilo realmente aconteceu, a história do professor e suas filhas e de todo o resto. Isso ou é apenas a mente de um velho que vive no passado. Patético, não é?

Não vou esconder a verdade de você. Nem sei se você vai ouvir essa fita. Hoje é sábado e você não está aqui. Então posso supor que você fez o mesmo que os outros? O mesmo que a sua mãe? Não te culpo, isso aqui não é para todos. Por isso menti durante todos esses anos... Eu não podia deixar que você soubesse o que eu fiz com a filha dele, sabe? Mas mesmo correndo o risco de te afastar mais ainda, não vou esconder o fato de que todos os dias eu esperei que Roberto surgisse por trás das grades do jardim.

E ele sempre aparecia, sujo e perdido, todos os dias esperando que eu mudasse de ideia e voltasse lá pra fora. E quando eu conto a história, de repente vejo ele sumindo por trás das árvores, e é aí que começam os ataques. Não entendo porque, sinto esse medo paralisante de... de ficar sozinho. E depois que você foi embora, ele apareceu mais uma vez por trás da grade, mas sinalizando histericamente com as mãos e com os braços. Os sinais não faziam sentido, mas era óbvio que ele queria dizer alguma coisa. Eu disse que não entendia, gritando, mas ele não conseguia me ouvir por causa do trânsito. Foi quando ele me chamou com os braços que eu percebi que eu havia perdido o interesse. Aquela não era mais a minha vida. Apenas acenei pra ele, exausto, e disse que não podia ou que não queria, não sei. Ele não me ouviu mas pareceu entender o gesto, pois ficou alguns segundos parado, encarando todo aquele espaço vazio entre nós depois das grades. Eu pertenço a esse lugar agora, disse pra mim mesmo. Chorei aquela noite, não por ele, mas por todos os caras das minhas fitas que não conseguiram encontrar o que procuravam. Choro pelo país inteiro, que se move por inércia na direção do buraco. Choro pelas filhas que eu perdi, incluindo você, e pelo brilho no rosto do pai de Carol percebo que ele também chora. E então me recolho ao silêncio, ao anonimato dos loucos e ao medo... que talvez seja o medo dos diretores do centro. O medo de que talvez a morte não possa morrer.

[Silêncio; Ruído - manuseio do gravador; Trânsito]

Mas a gente tá aqui pai... Do teu lado. Sempre estivemos.

[Pausa]

Filha?

[Pausa]

Pode desligar agora. Nós vamos te levar pra casa.    

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