Elaine Zheng

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"Elaine" Zheng, entrevistada por César Augusto em viagem organizada pelo Hospital Colônia Santana para reintegrar internos à sociedade. Nova Veneza, SC. Abril de 1985

Senhora Zheng?

[Silêncio]

Senhora... Gostaria de fazer umas perguntas...

[...]

Ouvi falar que podia te encontrar aqui e queria saber um pouco sobre... Sobre essa sua relação. Com os orelhões.

[Ficha cai no coletor; Silêncio]

Coisa rápida...

[...]

[Toque do telefone] Você vai atender?

[...]

[Em voz baixa] Ela continua sem fazer contato visual. [Toque do telefone] De costas, a largura de seu quadril ultrapassa a abóboda laranja do telefone público. [T. do T.] É uma mulher encorpada, sem dúvidas...

[...]

[T.T] Vou atender o telefone aqui, tá? Alou?

[Cantando] Alô, alô, responde, quem gosta de você de verdade?

Oi?

[Risada histérica]

Senhora Zheng?

[Bufadas intensas de alguém tentando recuperar o fôlego; Tilintar de fichas metálicas]

É você?

Quem é essa?

Eu consigo te ouvir daqui desse lado... e nem estou com o telefone no ouvido.

O nome é Elaine, meu querido...

Ótimo! Você pode falar um minuto?

Até três.

Melhor ainda...

Já se foi meio, pra falar a verdade.

Ouvi falar que você passa muito tempo aqui.

Muito mesmo. Tá vendo aqui, no casco?

[silêncio] O que significa?

Jiá, casa. Quando perguntam onde eu moro eu digo 3338245 e eles perguntam se esse é o CEP e eu digo que é meu orelhão. Não tenho vergonha. Já tentaram me expulsar daqui e também já fui presa. Mas depois que um advogado me disse que enquanto eu tivesse ficha e fizesse ligação quando os homem aparecesse, era só eu ficar aqui encolhida dentro do orelhão que ninguém podia me incomodar... Invasão de privacidade, diz ele. Ó, ouviu o clique? Hein? Um minuto já... Você acha que eu falo demais? Isso é porque minhas conversas duram sempre três minutos.

Você não pode usar mais fichas?

Não, não, quando faço uma ligação não gasto mais de uma. Apesar de eu ter bastante ficha, né. [Tilintar de fichas metálicas] Tá ouvindo? Tô guardando pra encontrar o corpo do meu marido. Cada ficha é preciosa. Eu já atravessei quase todo o país com elas. Se você já atendeu uma ligação de orelhão, é bem provável que a gente já tenha conversado antes. Elói, era o nome dele. Fui eu mesma que avisei que ele tinha morrido, vê se pode. [Risos] Um dia atendi o telefone e só ouvi o eco da minha voz, sabe como é? Mas não desisti, fiquei ouvindo minha própria voz por dois minutos. Repetindo Quem é, Fala alguma coisa, e coisa e tal, até que resolvi perguntar: Elói? E a voz me respondeu Ele não tá aqui, não, Elaine. Gelei, meu filho. Gelei e comecei a chorar. Eu sabia que era eu mesma ali do outro lado e que eu não ia gastar mais de uma ficha naquela ligação. Velha sovina. Perguntei onde ele tava e eu respondi que Elói tinha morrido mas que ninguém apareceu pra buscar o corpo. Ele tava apodrecendo numa vala no interior. Interior de onde? E a voz me disse que ele tava apodrecendo bem em baixo do meu nariz, e não lá em São Paulo como eu pensava.

E...?

E eu pedi pra ela me dizer onde ele tava. Ela me perguntou o que seria da gente se eu encontrasse nosso marido?

Como assim?

Foi o que eu perguntei, mas aí a ficha caiu e eu fiquei sozinha. Eu sabia que minha voz não queria que eu desistisse, mas ela me deixou sozinha... Esperando. Quando o telefone toca eu tô sempre aqui. Eu atendo com o coração disparado, toda vez... Nunca mais ouvi uma voz conhecida. É sempre alguém procurando alguém que mora por aí, mas nunca se referem a um lugar conhecido. Sempre bairros estranhos como Alicerce ou Argentina de cidades que eu nunca ouvi falar... Acho que são cidades fantasmas, se você quer saber. É estranho como essas vozes sempre são suspeitas, não é mesmo? Alguns até conversam, e eu percebo que tão procurando alguém também. Eu ouço a solidão na voz deles. E é por isso que conversamos até eu me lembrar que tô esperando uma ligação importante... Digo que tenho que desligar e eles fazem de conta que não se importam, mas aí eu ouço só a respiração deles por um segundo... aquela pausa de um segundo que é um silêncio pequeno mas na verdade esconde um silêncio triste e ainda maior, que eu conheço muito bem. Então desligo e espero.

Espera pela ligação...

O que mais eu posso fazer? Hein? Pra nós, pessoas como eu e você, filho, o mundo é isso aqui... é essa linha de telefone que une gente procurando gente, gente esperando na linha como se fosse na corda bamba, só esperando ser engolido pela escuridão de uma ficha que cai ou da maré que sobe.

[Clique metálico; Linha fica muda]

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