César Augusto [Continuação]

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César Augusto, vulgo "Doutor". Tomando café à margem da Rua Engelberto Koerich, nas dependências do Hospital Colônia Santana, São José, SC. Janeiro de 1992. [Continuação]

E então o professor caminhou até chegar numa praia qualquer e continuou caminhando, seguindo a orla em direção ao sul e às vezes desviando por cima de morros com mata fechada, sobrevivendo a base de frutas e peixes que ele conseguia de alguns pescadores.

Nos sonhos ele continuava esperando por algo que ele não sabia o que era. O pé continuava preso entre as pedras e a noite continuava lançando sombras que mais se parecem com rasgos na própria matéria dos sonhos. A diferença é que agora ele vê suas filhas deitadas sobre as pedras. Milhares de filhas que nunca nasceram espalhadas pelo litoral. Elas dizem que sempre estiveram lá ao lado dele e que o levarão para casa, mas a maré está começando a subir e ele sabe que não sobrará nada para ser lembrado. Quando acorda, ele anda como se estivesse à procura de alguma coisa, e quando alguém pergunta o que é, ele ignora e pede uma moeda... Até que alguém dá, e esse alguém é exatamente quem ele procurava. O problema é que ele já não lembra mais dos rostos e o homem de chapéu de palha na sua frente estende um punhado de moedas e pergunta se pode pagar um café. É claro que ele aceita.

[Pausa para gole ruidoso de café]

O homem o observa enquanto ele devora uma coxinha e diz que o procurou por toda parte e não sorri. Quando o desconhecido tira o chapéu, o professor já está chorando e agora ele reconhece o homem na sua frente melhor que a si mesmo. Era Roberto. O professor então vai embora, mas Roberto o segue à distância pelo outro lado da rua, e quando ele acorda Roberto ainda está lá, deitado num ponto de táxi de olhos abertos. No final desse mesmo dia e dos dias que se seguem ele sente a presença de Roberto em qualquer lugar que vá, caminhando em silêncio às suas costas como se fosse uma maldição ou um espírito mergulhado nas trevas com a única intenção de cumprir uma promessa.

Um dia Roberto dorme. E quando acorda, o professor de sua filha está chorando ao seu lado. Tudo que ele queria dizer para Roberto era que amou sua filha e que se arrependia, mas não sabia se Roberto estava entendendo, porque as palavras que saiam de sua boca eram atropeladas pelos soluços... e então Roberto segura sua cabeça com as mãos, assim...

[Pausa]

E diz que agradece por tudo. Agradece por ele ter levado ela embora. Diz que não conseguia mais tolerar o medo. Mas Roberto não o chama pelo nome. Ele o chama de Morte, e diz: Morte, não precisa chorar. A alma dela é nossa responsabilidade agora... E é muito mais fácil tomar conta daquilo que não pode morrer, amigo.

[Pausa para gole de café]

Por isso eu digo que todos tem a mesma escolha: conformidade ou insanidade. Eles fizeram a escolha deles. Então eles são vistos dentro das mesmas latas de lixo, compartilhando os mesmos cobertores, se lavando no chafariz da Praça do Congresso, caminhando um ao lado do outro como amigos de infância. Ignoram os olhares, porque é isso que todos eles fazem. Passam em meio a um corredor de faróis vermelhos ouvindo ao som de seus rádios, retalhos de uma mesma programação que os loucos conseguem ouvir se lançando pra fora de centenas de carros indo pro mesmo lugar. [Risada] Percebe? Ali, eles enxergam a discrepância entre eles e o resto mundo. Eles estão isolados dentro do próprio isolamento. E é nesse isolamento que eles encontram a liberdade.

[PAUSA para convulsão seguida de fonospasmo. Intervenção médica. Aplicação intravenosa de insulina. Enfermeira aplica pano úmido para conter salivação excessiva. Gravador cai no chão.]

[Enfermeira] De novo, Seu Augusto?

O que aconteceu com ele?!

É normal, moça... Ele tava te contando sobre o sonho?

[Silêncio; Respiração ofegante.]

Ele conta pra todo mundo. Judite, traz o rosinha aqui pra mim...

Todo mundo?

Seu Augusto, é aquele que tu gosta...

[Silêncio]

É moça, todo mundo que ele entrevista.    



"Carequinha", nome verdadeiro desconhecido, Hospital Colônia Santana, São José, SC. Pendente por conta da insistência do entrevistado em exibir seu órgão genital ao pesquisador. Setembro de 1985.    

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