Tudo aquilo que pensamos e fazemos é fruto dos discursos que nos constróem, enquantoseres psicossociais. Na sociedade em que vivemos, somos moldados por uma infinidadede discursos: discurso científico, discurso jurídico, discurso político, discurso religioso,discurso do senso comum etc. Paramos o automóvel diante de um sinal vermelho, porqueessa atitude foi estabelecida pelo discurso jurídico das leis de trânsito. Votamos em talcandidato de tal partido, porque esse tipo de voto foi conquistado pelo discurso políticodesse candidato.
Entre todos os discursos que nos governam, o mais significativo deles é o discurso dosenso comum. Trata-se de um discurso que permeia todas as classes sociais, formando achamada opinião pública. Tanto uma pessoa humilde e iletrada quanto um executivo dealto nível, com curso universitário completo, costumam dizer que os políticos são, emgeral, corruptos ou que o brasileiro é relaxado e preguiçoso. Na verdade, o discurso dosenso comum não é um discurso articulado; é formado por fragmentos de discursosarticulados. Uma fonte desse discurso são osditos populares, como Devagar se vai aolonge, Água mole em pedra dura tanto bate até que fura etc. Esse discurso tem um poderenorme de dar sentido à vida cotidiana e manter o status quo vigente, mas tende a ser, aomesmo tempo, retrógrado e maniqueísta. Podemos até mesmo dizer que os momentosdas grandes descobertas, das grandes invenções, foram também momentos em que aspessoas foram capazes de opor-se ao discurso do senso comum. Geralmente, essaspessoas, em um primeiro instante, se tornam alvo da incompreensão da massa quedefende o senso comum. Foi o que aconteceu com a chamada Revolta da Vacina, umarebelião popular ocorrida no Rio de Janeiro, de 12 a 15 de novembro de 1904, quandoOswaldo Cruz, diretor-geral da Saúde Pública do governo Rodrigues Alves, quis vacinar apopulação da cidade contra a febre amarela. A opinião geral era de que se tratava deinocular a doença nas pessoas. Dizem que até mesmo Rui Barbosa posicionou-se contra amedida, alegando o constrangimento das senhoras em expor o braço nu para tomar avacina. Os cariocas, inflamados, levantaram barricadas, quebraram lampiões deiluminação pública e incendiaram alguns bondes da cidade.
Voltando a Atenas e aos professores de retórica, uma das técnicas mais utilizadas por eles,para arejar a cabeça dos atenienses contra o discurso do senso comum, era a de criarparadoxos - opiniões contrárias ao senso comum - levando, dessa maneira, seus ouvintesou leitores a experimentarem aquilo que chamavam maravilhamento, capacidade devoltar a se surpreender com aquilo que o hábito vai tornando comum. Essa palavra foisubstituída no expressionismo alemão, no surrealismo francês e, sobretudo no formalismorusso, pela palavra estranhamento, definida como a capacidade de tornar novo aquilo quejá se tornou habitual em nossas vidas. Nesse sentido, o Elogio a Helena de Górgias foiparadoxal, pois contrariava o senso comum da época.
Uma das técnicas do paradoxo era criar discursos a partir de um antimodelo, ou seja,escolhia-se algum tema sobre o qual já houvesse uma opinião formada pelo senso comume escrevia-se um texto contrariando essa opinião. Era o antimodelo. Houve momentos emque floresceram em Atenas discursos iniciados sempre pela palavra contra: Contra osFísicos, Contra Érebo3 etc.
A retórica clássica se baseava, portanto, na diversidade de pontos de vista, no verossímil,e não em verdades absolutas. Isso fez com que a dialética e a filosofia da época sealiassem contra ela. Platão, por exemplo, em sua obra chamada Górgias, procura mostrarque a retórica visava apenas aos resultados, enquanto que a filosofia visava sempre aoverdadeiro. Isso fez com que a retórica decaísse perante a opinião pública (discurso dosenso comum) durante séculos. A própria palavra sofista passou a designar pessoa demá-fé que procura enganar, utilizando argumentos falsos. O interessante é que o próprioPlatão, na sua República, utiliza amplamente os recursos retóricos que ele própriocondenava. Nietzsche comentou, ao seu estilo, que o primeiro motivo que levou Platão aatacar Górgias foi que Górgias, além de seu sucesso político, era rico e amado pelosatenienses. Dizem, também, que um dos motivos do declínio da retórica foi que aexperiência democrática dos gregos foi muito curta. Acabou em 404 a.C., quando Atenasfoi subjugada por Esparta, ficando assim eliminado o espaço para a livre crítica de idéias eo debate de opiniões.
Nos dias de hoje, a partir dos estudos da Nova Retórica e do chamado Grupo u, de Liège,na Bélgica, a retórica foi amplamente reabilitada, tendo sido, sobretudo a partir dasegunda metade do século XX, beneficiada pelos estudos de outras ciências que seconfiguraram nesse século, como a Lingüística, a Semiótica, a Pragmática e a Análise doDiscurso.
Os métodos retóricos da exploração da verossimilhança e dos diferentes pontos de vistasobre um objeto ou situação têm sido o motor que vem impulsionando o grande avançomoderno da ciência e da tecnologia. Um bom exemplo disso são os trabalhos do médicoamericano Judah Folkman, no campo da cancerologia. O fundamento de sua pesquisa éum ponto de vista totalmente diferente do de seus pares. Segundo ele, é possívelcombater um tumor cancerígeno, cortando seu suprimento de sangue, por meio daeliminação da vascularização do tumor.
A habilidade de ver e sentir um objeto ou uma situação sob diferentes pontos de vista éimportante em qualquer área, pois está ligada ao exercício da criatividade. Diz-nos a esserespeito Fernando Pessoa:A única maneira de teres sensações novas é construíres-te uma alma nova. Baldadoesforço o teu se queres sentir outras coisas sem sentires de outra maneira, e sentires-tede outra maneira sem mudares de alma. Porque as coisas são como nós a sentimos háquanto tempos sabes tu isto sem o saberes? - e o único modo de haver coisas novas, desentir coisas novas é haver novidade no senti-las4.
Uma carta de amor, por exemplo, pode ser entendida apenas como uma forma de umapessoa transmitir a outra seus sentimentos. Mas pode também ser entendida de muitasoutras maneiras, como no seguinte trecho de Rubem Alves:
Uma carta de amor é um papel que liga duas solidões. A mulher está só. Se há outraspessoas na casa, ela as deixou. Bem pode ser que as coisas que estão nela escritas nãosejam nenhum segredo, que possam ser contadas a todos. Mas, para que a carta seja deamor, ela tem de ser lida em solidão. Como se o amante estivesse dizendo: "Escrevo paraque você fique sozinha . . ." E este ato de leitura solitária que estabelece a cumplicidade.Pois foi da solidão que a carta nasceu. A carta de amor é o objeto que o amante faz paratornar suportável o seu abandono.
Olho para o céu. Vejo a Alfa Centauro. Os astrônomos me dizem que a estrela que agoravejo é a estrela que foi, há dois anos. Pois foi este o tempo que sua luz levou para chegaraté os meus olhos. O que eu vejo é o que não mais existe. E será inútil que eu mepergunte: "Como será ela agora? Existirá ainda?" Respostas a estas perguntas eu só vouconseguir daqui a dois anos, quando a sua luz chegar até mim. A sua luz está sempreatrasada. Vejo sempre aquilo que já foi ... Nisto as cartas se parecem com as estrelas. Acarta que a mulher tem nas mãos, que marca o seu momento de solidão, pertence a ummomento que não existe mais. Ela nada diz sobre o presente do amante distante. Daí asua dor. O amante que escreve alonga os seus braços para um momento que ainda nãoexiste. A amante que lê alonga os seus braços para um momento que não mais existe. Acarta de amor é um abraçar do vazio.
1. Heurística é o método de análise que visa ao descobrimento e ao estudo do de verdades científicas. Apalavra se origina do verbo grego eurisko, que significa "achar", "encontrar".
2. Górgias, Fragmentos y Testimonios, pp. 90-91. A tradução é minha.
3. Filho de Caos e da Noite. Foi transformado em rio e precipitado nos Infernos, por ter ajudado os Titãs
4. Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, vol. l, p> 94. •