Gerenciando Relação

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  Quando entramos em contato com o outro, não gerenciamos apenas informações, mastambém a nossa relação com ele. Um bom dia, um muito obrigado, as formas detratamento (você, a senhora) tudo isso é gerenciamento de relação. Muitas vezes, aointroduzirmos um assunto, construímos antes uma espécie de "prefácio gerenciador derelação". O personagem Riobaldo, dialogando com seu interlocutor, em Grande Sertão -Veredas, diz:

Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa erepensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas queformaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do quenão sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda sabe. Só umas raríssimas pessoas - esó essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza deatenção1. 

A única informação desse texto é que Riobaldo vai falar do sertão, coisa pouco conhecida.O resto é gerenciamento de relação. 

Às vezes, um diálogo é puro gerenciamento de relação. É o que acontece quando duaspessoas falam sobre o tempo ou quando dois namorados conversam entre si. O que dizemé redundante. Se um diz - Eu te amo!, isso é coisa que o outro já sabe. Mesmo assim,pergunta outra vez: - Você me ama? E recebe a mesma resposta. E ficam horas a fio nessaredundância amorosa, em que o importante não é trocar informações, mas sentir emplenitude a presença do outro.   

  Depois que o relacionamento evolui e se casam, passam a sentir-se mais seguros, um emrelação ao outro, e aí começam a negligenciar a parte carinhosa, sensível entre os dois,para cuidar de aspectos mais práticos. Por esse motivo é que, no espaço privado,acabamos gerenciando mais informação e menos relação. Dentro de casa, raramente aspessoas dizem por favor ou muito obrigado. No espaço público, até mesmo por motivo desobrevivência social, as pessoas procuram, com maior ou menor sucesso, gerenciar, alémda informação, a relação. 

No mundo de hoje e no futuro que nos espera, é muito importante saber gerenciarrelação. O mundo está passando por uma mudança em relação ao emprego industrial erural. No campo, para o futuro, a perspectiva é termos apenas 2% da populaçãointeragindo com uma agricultura altamente mecanizada. Nas cidades, menos de 20%trabalharão nas indústrias robotizadas e informatizadas. O resto (mais de 80%) ficará naárea de serviços. Ora, serviços implicam clientes e clientes implicam bom gerenciamentode relação. O trabalho do futuro dependerá, pois, do relacionamento. Mesmo osprofissionais liberais dependem dele. O médico ou o dentista de sucesso não énecessariamente aquele que entrou em primeiro lugar no vestibular e fez um cursotecnicamente perfeito. É aquele que é capaz de se relacionar de maneira positiva comseus clientes, de conquistar sua confiança e amizade. 

Um exemplo dessa mudança é o fato de que algumas concessionárias de automóveisdescobrirem, em pleno século XXI, a távola redonda. Você se lembra daquela idéia genialdo rei Artur em substituir a mesa retangular, à qual ele se sentava com os cavaleiros, ediante da qual eram disputados lugares em termos de hierarquia, por uma mesa redonda,em que todos eram iguais? As concessionárias estão fazendo a mesma coisa. Estãosubstituindo as mesinhas retangulares em que o cliente ficava "frente a frente" com ovendedor representando a empresa, por mesinhas redondas (pequenas távolas redondas),onde ambos se sentam lado a lado, o que favorece um relacionamento mais informal emenos hierárquico. 

No plano da vida pessoal, não é diferente. Quantas pessoas nós conhecemos, gentefamosa, bonita, rica, com prestígio, mas extremamente infeliz, por não saber se relacionarcom o outro! A verdade é que ninguém é feliz sozinho, mas, ao mesmo tempo, temosmedo de nos relacionar com o próximo. Conseguimos diminuir a distância que nos separadas partes mais longínquas do mundo, por meio da aviação a jato, da tevê a cabo, daInternet, mas não conseguimos diminuir a distância que nos separa do nosso próximo. Equando conversamos com as pessoas, falamos sobre tudo: futebol, automobilismo,política, moda, comida, mas falamos apenas superficialmente sobre nós mesmos e, assim,não conhecemos o outro e ele também não nos conhece! 

Temos medo de entrar em contato com o outro em nível pessoal, mas precisamos venceresse medo! Há pessoas que vestem uma espécie de armadura virtual para se defender. Otempo passa e elas não percebem que essa armadura não as está protegendo, estáapenas escondendo as feridas da sua solidão. O outro deveser visto por nós como uma aventura. Temos de arriscar! Nós nunca estamos diante depessoas prontas e também não somos pessoas prontas. Ao contrário, é no relacionamentocom o outro que vamos nos construindo como pessoas humanas e ganhando condiçõesde sermos felizes. Fernando Pessoa nos fala da frustração de quem não foi capaz de viveressa aventura: 

Pensaste já quão invisíveis somos uns para os outros? Meditaste já em quanto nosdesconhecemos? Vemo-nos e não nos vemos. Ouvimo-nos e cada um escuta apenas umavoz que está dentro de si. As palavras dos outros são erros do nosso ouvir, naufrágios donosso entender2. 

Muitas vezes, temos medo do poder do outro e por isso nos retraímos. Muitas pessoastemem o poder de seus chefes, de pessoas de nível social mais elevado, às vezes de seuspróprios pais, maridos e esposas. A primeira grande verdade que temos de aprender éque nós aturamos os déspotas que nós queremos aturar. O poder que alguém tem sobremim é uma concessão minha! Explosões de raiva, ameaças, acusações não revelam poder,mas fraqueza! Minhas ações são a fonte do poder do outro. 

Certa vez, uma amiga associou-se ao clube de uma cidade para a qual se havia mudadorecentemente. Ao começar a freqüentá-lo com os filhos, teve algumas surpresasdesagradáveis. A piscina era cercada por grades e, antes de usá-la, tinham todos de tomaruma ducha e apresentar as carteiras do clube, embora já tivessem feito isso na portaria.Uma das crianças, que tinha entrado com uma mochila, teve de retornar ao vestiário paradespejar seu conteúdo em um recipiente de plástico transparente, para que os fiscais dapiscina pudessem verificar o que estava transportando. Ao voltar à piscina, teve de tomaroutra ducha e apresentar novamente a carteira. Quando alguém queria tomarrefrigerante ou um sorvete, não podia fazê-lo dentro do recinto da piscina. Tinha de sair, iraté o bar e voltar depois, repetindo a ducha e a apresentação da carteira. Depois deinúteis reclamações a funcionários e à direção, minha amiga decidiu mudar de clube eficar livre daquela rotina infernal. Ao associar-se ao clube, sem que soubesse, ela tinhadado a seus funcionários e diretores o poder de controlar seus passos.Bastou sair dele para ficar livre desse poder! 

Minha mente é também a fonte do poder do outro. Para que eu me liberte, precisoprimeiro libertar minha mente. Na Austrália, em uma tribo aborígine em que existiampráticas semelhantes ao vodu, o xamã3 podia condenar alguém à morte, simplesmenteapontando-o com um osso e ordenando-lhe que morresse. E o índio apontado de fatomorria, sem cometer suicídio, de morte natural, pois ele estava preso dentro de suaprópria mente ao poder do xamã. Cientistas que estiveram fazendo pesquisas nesse local,em 1925, pediram ao xamã que lhes ordenasse morrer, utilizando o mesmo procedimentousado com os membros da tribo, e nada lhes aconteceu.  

  Durante a Idade Média4, sobretudo por influência de Santo Agostinho, a Igreja condenavaa prática do sexo, mesmo entre pessoas casadas, nos dias santificados, aos domingos,quarenta dias antes da Páscoa, pelo menos vinte dias antes do Natal, três dias antes dereceber a comunhão. Os períodos de continência chegavam a cinco meses ao ano e osfiéis, com justa razão, se queixavam de que não lhes sobrava muito tempo. Entretanto,procuravam respeitar as proibições, sobretudo as mulheres, pois morriam de medo deque Deus as visse em pecado e tivessem de confessar-se aos padres, que tinham o poderde aplicar as terríveis penas dos Penitenciais. Essas condenações variavam entre ficarmeses a pão e água até a prisão em regime fechado. Apenas a título de exemplo, para osexo oral a pena era de dez a quinze anos de prisão, enquanto que para o assassinatopremeditado era de sete anos.

Foi por essa época, no século XIII, na cidade de Lausanne, na Suíça francesa, que cincomulheres, entrando na Catedral para a festa do padroeiro, sofreram uma espécie deataque epilético, pelo remorso de terem feito amor com seus maridos no dia anterior.Somente depois de confessarem esse "terrível pecado" e manifestarem sinceroarrependimento, voltaram ao estado normal. A mente delas dava aos sacerdotes e à Igrejao poder de fazê-las ficar doentes e ter ataques.   

  1. Guimarães Rosa, Grande Sertão - Veredas, p. 84.  

  2. Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, p. 69  

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