Chovia torrencialmente com raios e trovões, mas não o suficiente para conseguir abafar o som dos gritos histéricos seguidos de palavrões que ecoavam pelo velho casarão, o barulho vinha do quarto ao lado com mobilia de mogno caro, trabalhado à mao. A beleza e o requinte do ambiente constrastavam com a cena que se desenrolava habitualmente ali, quase como um ritual diário.
O pequeno garoto deitado em sua cama no quarto ao lado do barulho que vinha dos gritos, tentava em vão suportar a discussão dos seus pais, bloqueando os ouvidos com as mãos delicadas, muito embora a criança presenciasse aquelas brigas constantes, era sempre uma sensação muito desconfortável para ele. O evento se constituia em um momento já esperado, já antecipado com uma estranha naturalidade para a família toda. Sentia-se que com o passar dos anos, este ciclo evoluiria provavelmente para a indiferença total.
O pai, vendedor externo de gênero alimentícios passava longos períodos longe de casa, tinha uma personalidade voltada à resignação a qual fugia ao confronto, seus olhos profundos e sua postura arqueada marcava sua presença quase imperceptível e apática. A esposa, uma mulher alta com lindos olhos verdes, possuía uma voz firme e incessante, que podia ser ouvida de uma grande distância, sua voz dominava o ambiente como uma bruxa que infestava os pesadelos de crianças em noites escuras. Uma voz estridente que irritava os tímpanos do senhor Amaro, este tinha a nítida impressão de estar sobe o mesmo teto de uma hiena, quando Rosa Maria soltava seu vocabulário incessante.
Rosa maria adorava importunar o marido com uma série de acusações e blasfêmias, que logo sem motivo aparente transformavam-se em brigas escandalosas. A banalidade das confusões deixava o marido bastante cansado, a frustração ficava evidente no rosto carancudo do senhor Amaro que se enchia da amargura a cada cena deplorável que tinha de suportar em prol de um casamento em ruínas. Uma boa garrafa nestes momentos não podia falta como uma boa companheira, para ele era a única saída encontrada em muitas ocasiões. A embriaguez era infinitamente melhor que a sobriedade da convivência infeliz.
Na ocasião das viagens do esposo todo o comportamento histérico de Rosa Maria recaia sobre o inocente junior, que suportava todos as formas de constrangimentos, em especial na segurança do sigilo doméstico.
Amaro protelava seu regresso ao máximo, ele sempre aceitava o trabalho que seus colegas dispensavam, desta forma, ficava ao menos três dias a mais fora da convivência indesejada. Quanto mais o marido demorava a retornar, mais júnior tinha que suportar a frustração guardada por sua mãe, especialmente para seu pai, ser despejada nele em torrentes d insultos. O pequeno nao passava de uma criança frágil que ainda nao possuía capacidade para entender tudo aquilo.
Júnior foi um menino introspectivo, que começou a falar tardiamente, e por causa deste fato seu pai costumava dizer que júnior era um retardo mental, um debiloide, uma verdadeira personificação da infelicidade matrimonial. Amaro simplimente detestava tudo naquela casa e júnior sentia com frequência seu desprezo por ser parte daquele mundo, um mundo governado pela hipocrisia e mediocridade. Este sentimento era costumeiramente expresso quase sempre por comentários maldosos e cruéis. Ele, Amaro sentia-se consumido pela mesquinharia, sufocado pelas desilusões do casamento e torturado pelos sonhos perdidos. Como podemos mentir para nós mesmos? E como podemos nos enganar tanto, quando acreditamos na aurora do amor no início do casamento? Como? Certamente estes questionamentos que invadiam a mente do senhor Amaro em momentos de melancolia.
Fatos extraordinários geralmente surgem em ocasiões inusitadas e nao foi diferente com essa família em particular, mesmo com suas particularidades. A família estava envolta em um declínio em todos os aspectos da vida, tentando a todo custo segurar-se a um passado remoto e acalentador, um passado que não dava conforto a mais ninguém. E como ja não bastasse os problemas em casa, a escola recomendou aos pais de júnior , que o levassem a uma escola para crianças especiais (APAE), onde segundo a escola, ele teria acompanhamento especializado para o tipo de problema que ele apresentava. A escola insistia que o garoto era acometido por algum tipo de autismo, ele era tratado como o doidinho da escola, um pobre coitado que precisava de auxílio em tudo que fazia, mas em um certo dia sem maior importância, junior entrou na sala onde sua mãe fazia faxina, puxou o vestido de Rosa e falou pela primeira vez. Rosa Maria deixou cair os objetos que tinha na mão. O pai olhou para junior instintivamente por ouvir pela primeira vez a voz do filho proferindo palavras que faziam sentido. Como aquilo foi possível, ninguém sabe, o fato é que ja tinham assimilado a idéia na qual Júnior era autista e que nao poderia interagir com facilidade com outras pessoas ditas normais.
-mãe quer água! Falou Júnior meio atrapalhado, porém deixando claro que nao era surdo-mudo, ou tão pouco autista. A mãe olhou espantada para o menino, a mãe ja havia se adaptado ao seu silêncio.
Nas semanas seguintes foram notáveis para aqueles que estavam acostumados com júnior e sua fortaleza silenciosa. O garoto deixou de ser um problema na escola para se torna um pequeno prodígio.
Neste mesmo período a vida financeira ficou complicada para o senhor Amaro, em um curto período a situação se deteriorou forçando a família a se desfazer de vários bens, e no final restando apenas a casa onde moravam:o velho sobrado da Rua Pinheiro de Barros. Todavia, nada disto afetou o milagre que foi posto sobe a pequena criança.
Os anos de opulência haviam chegado ao fim, as brigas de outrora agora se transformaram em agressões físicas na presença do pequeno e frágil Júnior. Rosa Maria aos poucos foi deixando o álcool assumir o controle de sua vida patética. A marca da bebida consumida por Rosa não tinha tanta importância, apenas importando o fato de ter a mão seu liquido precioso para seu entorpecimento dos sofrimentos da vida.
Nunca se soube ao certo como foi a última briga no velho sobrado no final da Rua Pinheiro de Barros, ou mesmo o que se passou na cabeça do senhor Amaro no momento da sua decisão. A casa tornou-se uma cripta aonde poucos aventura vam-se, porém o fato é que, o senhor João Amaro de Queiroz, nao suportou aquele ambiente degradante e finalmente foi embora sem ao menos se despedir do pequeno Júnior.
O inocente brincava no quintal enorme, durante aquela ensolarada tardede de verão, solitário queimava formigas com uma velha lente que havia encontrado ali mesmo em um monte de entulhos. O pai apenas olhou pela janela da cozinha o garoto distraído, entao pegou suas malas e saiu sem nunca ter olhado para trás. Junior jamais falou novamente em seu pai, parecia que ele havia morrido para Júnior, nunca houve uma carta, um cartao de natal, nada. O senhor Amaro passou uma borracha em seu passado e resolveu fazer novas escolhas e recomeçar bem longe daquele lugar.
Rosa Maria nada viu da partida do esposo, havia bebido demais naquela tarde para conseguir ver alguma coisa. Seu ódio e rancor pelo marido e consequentemente de todos os homens fez com que desenvolvesse um sentimento conflitante em relação ao seu filho, ela sabia que precisava protegê-lo, pois era mãe, mas ao mesmo tempo ele era representante da classe dos famigerados veste calças. Estes que tratam as mulheres como objetos, usam e as descartam, quando começam a apresentar algum problema. Neste sentido ela passou a ter enorme desprezo pelos homens.
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A Outra Face
Mystery / ThrillerA história de um jovem charmoso e sua alma desprovida de humanidade, dando vazão aos seus instintos mais perversos, mas em sua trajetória ele encontrá um herói pouco provável que arriscará tudo para tentar detê-lo.