Desorientação

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Rosa Maria ficou um grande período sem sair de casa após a partida do seu esposo, ela ficou afundada na depressão e na bebida, batendo em júnior por qualquer motivo banal. Um estado lastimável de auto piedade se instalou sem muita resistência.

O pequeno aos poucos desenvolveu uma couraça resistente, uma resiliência única, pronta a suportar as piores humilhações.

-você e igual ao imprestável do seu pai, um idiota completo; sai daqui lixo. Berrava Rosa Maria para seu filho que ficava calado imóvel olhando para a mãe com seus olhos frágeis, olhos cheios de lágrimas, lágrimas que pouco a pouco foram secando, até cessar para sempre. Não era incomum a mãe da pobre criança trancá-la no armário por várias horas. Nas primeiras vezes o desespero apareceu, depois de algumas sessões ele desapareceu completamente.

-porque você nao nasceu uma menina, os homens somente maltrataram as mulheres. Falou Rosa enquanto desferia um tapa no rosto de júnior.

À medida que o tempo seguia seu curso natural, Maria ficava mais e mais paranóica e obsessiva com diversos assuntos, mas sobretudo com religião. A desorientada passou a ter um novo vício: acreditava que todos os seus problemas tinham origem demoníaca, entao encheu a casa com objetos e figuras religiosas. Criou-se um santuário que possuía uma miscelânea de delírios paranóicos na parte central da casa, sempre com velas acessas, dando o tom do ambiente delirante. Rosa Maria começou a se perder em seu próprio vazio. Nestes estados alterados de consciência, ela enveredava em um mundo particular, um lugar bastante difícil de especular sobre as suas dimensões.

A lastimável mulher alternava momentos em que atribuia seus problemas e obsessões ao seu filho, ja em outras situações dava um intenso carinho maternal. Parecia que júnior era grato pelas poucas horas de afeto maternal, ele supunha realmente ser o causador dos infortúnios da mãe, internalizando isto e por vezes acreditando realmente merecer os castigos impostos por sua mãe desequilibrada.

Júnior agora estava com dez anos de idade, e seus olhos eram verdes e expressivos, olhos cheios de vida, apesar de cultuar pensamentos sombrios que germinavam e cresciam dia após dia, dentro do seu mais intimo e secreto ser. Neste período começou a apresentar uma grande capacidade de encantar as pessoas, nunca tirava notas baixas ou ficava de castigo, alias ele aprendia com uma velocidade enorme e os professores o adoravam, tinha modos ao se comportar que as outras crianças notadamente nao tinham. O garoto tinha modos de um lorde, um rapazinho que recebia todos os mimos dos funcionários da escola. Rosa era um péssima mãe em vários aspectos, mas ela sabia como ensinar uma criança a portar-se em público. Rosa conhecia a importância do traquejo social e nao cansava de ensinar isto ao seu filho.

-por favor, com sua licença etc. Repetia a criança em seu cotidiano pela escola.

Nao era possível suspeitar do sofrimento que junior era submetido em casa, ele parecia ter desenvolvido uma capacidade de disfarçá-lo habilmente das outras pessoas ao seu redor.

Um dia qualquer júnior envolveu-se em uma briga com um colega por um pedaço de bolo. O garoto se negou a entregar para júnior seu pedaço de bolo de chocolate, júnior reagiu com fúria a negativa do colega. Ele partiu em direção ao garoto, agarrou-o pelas pernas jogando o no chão, o garoto tentou reagir esperneando, porém júnior foi bem mais rápido acertando uma sequência de socos no rosto, o garoto apenas esperneou em vão sentindo os golpes. As outras crianças da escola municipal Antônio Freire, nunca tinham presenciado uma demonstração tão grande e explicita de ódio.

A confusão foi direto para a direção da escola aonde professores e monitores tiveram grande dificuldade para conter Júnior. Ele gritava alto e falava palavrões escabrosos de variados gêneros. O sangue escoria pelo rosto do garoto, que levantou desorientado, cambaleante, sendo amparado pelos professores. Nao era possível ver o rosto do garoto em meio a tanto sangue que cobria sua face.

Como podia ser possível um menino que parecia um anjo saído de um conto natalino ser capaz de tal ato, como? Foi o que todos se perguntaram na escola.

Júnior não reagiu muito bem a sensação de ter o seu desejo negado. Uma criança de aparência tao afável e meiga, nao deveria ser capaz de ter tanta raiva dentro de si. A baixa tolerância a frustração seria uma companheira inconveniente, e impossível de desligar ou ignorar. Com furia ou malícia, ele sempre encontraria uma forma de satisfazer seus desejos. Nada nem ninguém deveria ficar entre ele e seus desejos.

No dia seguinte a mãe de júnior foi chamada a comparecer na escola. Mesmo contra sua vontade ela foi conversar com os professores, Rosa nao disse nada enquanto a diretora fala sobre os acontecidos do dia anterior. A diretora demonstrou preocupação na mudança no comportamento de júnior. No semblante da diretora era possível notar a desconfiança e um ar inquisidor voltado mãe. Ao final da conversa ela prometeu, e deu plenas garantias que aquele comportamento inadequado jamais voltaria a ocorrer. Júnior ficou calado sabendo o que lhe aguardava ao chegar em casa. Nada de novo!

Durante o ano seguinte júnior protagonizou uma série de problemas maiores, e a direção nao suportou mais e providenciou sua expulsão da escola de uma vez por todas. Para o agora metódico júnior não foi tao ruim, ele teria a sua disposição um novo mundo cheio de possibilidades, pronto para ser desbravado.

No período de mudança de escola algo estranho começou a acontecer, os animais das redondezas da casa de júnior repentinamente passaram a desaparecer: gatos, cachorros, e isto estava acontecendo com muita frequência na vizinhança. Muitos suspeitavam da doida do sobrado sempre ranzinza e brigona, porém o que acontecia de fato era um mistério completo, somente não para o filho da brigona. Júnior havia expandido suas experiências com animais, não se contentava mais em apenas queimar formigas, ficou viciado em anatomia e com a dor que esse conhecimento trazia aos animais, ele simplesmente nao conseguia parar fascinado com suas descobertas bizarras. A sensação de poder sobre o outro causava nele uma intensa satisfação, sensação que o pré adolescente perseguia mais e mais.

Em dias de verão quando as chuvas eram intensas e não havia muita coisa para fazer, júnior ficava horas a fio ao lado da mãe ouvindo suas histórias e teorias sobre os problemas e desmandos do mundo, de certa forma histórias agradáveis para o gosto de Júnior. Estranhamente nestas ocasiões ela era terna com o filho, que retribuia fazendo chá para a mãe ou lendo algo que ela gostasse. Rosa gostava dos clássicos da literatura e passou este hábito para seu filho, os dois viajavam em mundos que conheciam apenas dos livros.

Certa vez o conselho tutelar foi até a resistência dos Queiroz, havia uma denúncia de maus tratos contra Rosa, que obviamente negou tudo, afirmando que tudo não passava de calúnias e inveja dos vizinhos fofoqueiros. Depois de investigar a denúncia e nada ser encontrado, as autoridades deram-se por satisfeitos pelas evidências (ou falta delas) e deixaram Rosa Maria em paz.

Como ela tinha sortilégios e habilmente dissimulava. Júnior estava tendo aulas com a melhor professora na disciplina, e como era bom aluno. Como um bom aprendiz, enganava a todos com mentiras sinceras e engodos de toda natureza. Ele havia entendido o poder que sua beleza e boa oratória podiam ter.

-júnior você lembra do seu tio Marcos, aquele que foi um homem de verdade, caso meu irmão estivesse aqui, eles iriam saber o que é bom! Rosa idolatrava seu irmão mais jovem, um ser com uma personalidade caótica e agressiva, que foi assassinado por seus próprios parceiros na penitenciária onde cumpria pena. Este ser medíocre foi responsável pela ruína e decadência da família, afinal um bom exemplo a ser seguido na opinião de Rosa, claro!

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