Ossos do Ofício

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Era coveiro há trinta anos. Três décadas cavando buracos e enterrando caixões. Todos os dias.

Envelhecera entre as covas e lápides e podia dizer, com alguma segurança, que não havia muita coisa que ainda não tivesse visto naquele cemitério. Poucas não foram as vezes em que viu vagar por entre as tumbas uma sombra fantasmagórica ou que ouviu algum sussurro cavernoso ecoar dos mausoléus. Espectros, assombrações, espíritos, almas penadas. Nada disso causava estranheza ou desconforto para um homem cuja principal companheira cotidiana era a Morte.

E algumas visões eram tão corriqueiras que já passavam quase despercebidas. Não se impressionava com tais fenômenos. Ossos do ofício - era o que ele costumava dizer.

Mas naquele fim de tarde o trabalho ao qual se dedicava não era, em certa medida, uma banalidade. O último enterro do dia estava sendo feito sem a presença de nenhum familiar ou amigo do defunto. Dois homens elegantes foram ao cemitério apenas entregar o corpo e tomar as providências necessárias junto à administração. Escolheram um belo jazigo, muito bem localizado, esculpido em mármore negro. Depois de tudo acertado, o morto permaneceu solitário. O velho coveiro não se lembrava de nenhuma vez nesses trinta anos em que situação semelhante tenha acontecido. O finado não parecia ser muito bem quisto pelos seus, afinal.

Mas como não costumava especular sobre a clientela, não se deteve em divagar sobre a excentricidade do caso.

Seguiu, então, com os procedimentos para o sepultamento. Levou o ataúde - uma bela peça em madeira nobre, avermelhada, com flores e ramos entalhados na tampa e nas laterais - até a tumba. A cova já estava aberta, com a tampa de mármore levantada, esperando que o coveiro depositasse gentilmente o seu mais novo habitante. Quando o homem começou a descer o caixão ouviu um som de batida em madeira oca. Parou por um momento e, como um cão perdigueiro, observou. Ouviu novamente o mesmo barulho, agora mais intenso. E percebeu que ele vinha do caixão.

As batidas se repetiram, mais fortes e mais constantes. E agora seguidas por murmúrios. Não eram sussurros etéreos saídos do além, mas gemidos bastante humanos e bastante reais.

Lamentos e soluços que vinham de um corpo palpável e com vida. E que logo se transformaram em gritos desesperados, carregados de angústia. A tampa do ataúde começou a vibrar ao ritmo das batidas que vinham do seu interior. E rapidamente todo ele estava sacolejando a meio caminho do fundo da cova.

O coveiro permaneceu estático enquanto assistia àquele espetáculo funesto. De todas as coisas macabras ou assombradas que já havia visto aquela era a primeira vez que presenciava algo parecido. Mesmo para alguém como ele, habituado aos caprichos da Morte, aquele era um evento extraordinário. Arregalou os olhos e esfregou-os, como se estivesse despertando de um transe.

Respirou fundo. Deu uma cusparada no chão. E terminou de descer o caixão que se debatia. Por fim fechou a tampa de mármore negro, que caiu fazendo um estrondo rouco. Ossos do ofício...

Por, Mirlene Souza, do site Contos de Terror.

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