Abaixo da Ponte

68 9 0
                                    

Certa noite, enquanto voltava para casa depois de mais um monótono e cansativo dia de trabalho, resolvi tomar um outro caminho, um pouco mais longo, afinal não tinha muito para fazer naquele apartamento de merda mesmo.

Era uma rua estreita com uma velha ponte de madeira mais à frente. Não era tão comprida e, apesar de castigada pelo tempo, sua estrutura aparentava ser bastante firme e acostumada com grandes quantidades de peso. Ora, também não poderia ser menos que isso, pois quem arcaria com as consequências se algo de muito ruim acontecesse por ali? Sob a ponte corria um rio lamacento de águas pesadas e barulhentas que fluía vagarosamente entre entulhos e pequenas rochas. O cheiro de lixo ardido beirava o limite do insuportável.

O lugar estava deserto. Um olhar mais atento com a ajuda da luminosidade de um poste, que dava um contraste completamente destoante ao local, me fez perceber que não havia residências ou nenhum tipo de placa que sinalizasse qualquer coisa por ali e que as calçadas estavam tomadas pelo mato e uma quantidade absurda de todo tipo de tranqueira, assim como as margens daquele rio, que por sinal, entre ele e a ponte havia uma altura considerável. Engraçado como nunca passou pela minha cabeça procurar saber o que tinha por aquelas bandas. Depois de tantos anos passando pelo mesmo lugar sem prestar atenção em nada ou ninguém, a sensação de estar numa área completamente distante, mesmo não estando, veio à tona com muita estranheza.

Enquanto cruzava a ponte batucando com uma das mãos abertas no corrimão e olhando para baixo, observando a água correr, eis que de trás de uma das árvores surge uma estranha figura. Encurvada, com a ponta dos pés e das mãos no chão, moveu-se rápido até a margem do flume, porém sem causar qualquer tipo de barulho. Começou a fazer uns movimentos estranhos, como se estivesse cavando. Logo em seguida entrou na água e atravessou até a outra beirada, voltando a embrenhar-se mata adentro.

Parei por um instante e me debrucei sobre o braço de madeira, forçando um pouco mais a vista na tentativa de vê-la novamente. Não pude enxergar quem (ou o que) era com clareza. Além da distância, o relógio já apontava 22:15 e a escuridão abaixo não permitiu que eu visse mais do que uma silhueta humanoide, mas que movia-se de forma bastante peculiar. Nunca tinha visto nada parecido com aquela coisa.

Decidi voltar ao início da ponte e descer pelo pequeno rochedo ao lado que, por não ser tão íngreme e relativamente de fácil descida, dava acesso à beira daquele rio. O cheiro ali era muito pior. Guardei os fones de ouvido na mochila e com o casaco tapei o nariz. Comecei a caminhar, olhando para o outro lado, a fim de tentar encontrá-la. Esperei por mais alguns minutos até que ela pudesse reaparecer. Não demorou muito. Saindo do mato, aquele mesmo indivíduo voltou a dar as caras. Logo que notou minha presença parou de se mover, pôs-se de cócoras e passou a me observar.

Comecei a tremer, sem saber se era devido a noite fria ou por causa daquele ser bizarro que estava a mais ou menos sete metros à minha frente, do outro lado do rio. Um tipo de animal com aspectos humanos, talvez. Ou, quem sabe, uma pessoa com problemas mentais, até mesmo alguém ferido, precisando de ajuda... Não sei o que me passou na cabeça quando tive a ideia de descer até ali. Nunca fui um exemplo de coragem ou nada do tipo. Muito pelo contrário, para falar a verdade. A presença daquela estranha criatura imóvel, me encarando sem demonstrar qualquer reação, me fez recuar dando alguns passos para trás no intuito de sair daquele lugar o mais depressa possível.

Quando me virei, outro ser semelhante ao de trás saía dos arbustos mais à frente. Logo que me viu, seu comportamento foi bastante parecido, abaixando-se com os joelhos dobrados e as palmas das mãos ao chão, permanecendo inerte. Naquele instante pude constatar que aquelas coisas definitivamente não eram humanas ou sequer pareciam com qualquer tipo de animal do qual eu já tinha visto ou ouvido falar.

Apesar da baixa luminosidade, este, por estar mais perto, revelava maiores detalhes em sua aparência. Pude perceber que sua pele era quase que transparente e muito fina, de cor acinzentada. Tinha a estatura mediana de um homem adulto, mas a cabeça era ligeiramente maior, assim como os olhos, que eram duas grandes bolas pretas quase que saltando para fora. Parecia não ter qualquer tipo de abertura nasal e nada parecido com pelos pelo corpo, a boca resumia-se a um grande rasgo delineando o início de um arco que ia de um orifício auricular ao outro. Apesar de parecer, não estava esboçando nenhum tipo de sorriso ou coisa parecida, aspecto esse que causava ainda mais repúdio.

Lentamente aquilo começou a se aproximar, com um andar quadrúpede, dando um passo de cada vez, como um predador pronto a dar o bote em sua vítima a qualquer momento. Quando me dei conta, percebi que o outro já estava atravessando o rio, também ao meu encontro. Não pensei em outra coisa a não ser correr, seguindo em direção oposta a ponte, pelo leito daquela torrente fétida e lamosa de águas escuras, sem olhar para trás.

Logo eu estava numa espécie de pântano. O matagal que há pouco tempo atrás cobria, no máximo, metade das minhas canelas, deu lugar a grandes árvores, afastando ainda mais a possibilidade de qualquer ponto de luz me ajudar naquele momento.

Olhei para trás e não os vi. Também não via mais a ponte, muito menos a claridade do poste. Talvez eu tenha corrido uma distância maior do que havia imaginado. Meus sapatos estavam pesados por conta da lama e no caminho acabei deixando a mochila para trás.

Fiquei parado por um tempo, olhando em volta, tentando enxergar alguma coisa que pudesse me dar uma indicação de como sair daquele pesadelo. Uma sensação de impotência havia tomado todas as minhas forças. Estava com dificuldade de respirar e estranhamente cansado, mesmo tendo corrido uma distância razoavelmente pequena. O futum daquele lugar começou a revirar meu estômago. Pressionei ainda mais o casaco contra meu nariz, dessa vez com as duas mãos.

Voltei a ver as duas formas repulsivas se aproximando pelo mesmo caminho que corri. Um terrível pressentimento de estar cercado por aquelas aberrações martelava cada parte do meu corpo com uma força absurdamente desproporcional, na qual minha sanidade poderia sequer suportar. Uma delas estava com a mochila. Segurava-a com a boca enquanto revirava seu interior. A outra mão estava sendo usada como apoio para seguir o outro bicho, que estava alguns passos à frente. Caminhavam vagarosamente informes, como crianças que estão aprendendo a andar, mas sem tocar os joelhos no chão, apoiando-se somente em suas mãos e pés.

Foi então que decidi esperar. Não porque um raio de coragem havia me iluminado, mas sim porque estava paralisado diante de tais aberrações. Desistir seria a expressão correta. Havia entrado em pânico, estava em estado de choque, não sei. Meu corpo simplesmente não se movia. A única coisa que eu conseguia fazer era me perguntar repetidas vezes o que diabos eram aquelas coisas.

No meio do caminho pararam e olharam em volta movimentando a cabeça. Entreolharam-se reproduzindo um sonido esquisito, como se finalmente estivessem esboçando algo parecido com uma risada, cortando a calada daquele pântano escuro. Novamente passaram a me reparar. Após alguns instantes retomaram a trajetória em minha direção, mas dessa vez apressaram os passos repentinamente. Num piscar de olhos as duas monstruosidades me tinham ao alcance, articulando sons incompreensíveis por uma fenda gosmenta no lugar da boca e exalando um odor pútrido e cadavérico pelo corpo. Lembro-me apenas do primeiro impacto de uma das mãos do que estava mais adiantado, rasgando a pele do meu pescoço e rompendo minhas veias jugulares.

Após isso, não sei como ou por qual razão, minha última lembrança, além do gosto forte de sangue na boca, talvez tenha sido uma longínqua imagem borrada de uma minúscula centelha de luz que refletia daquele velho poste próximo à ponte. Notava-me extraordinariamente leve, como se meu corpo não pesasse absolutamente nada. De fato, sequer o sentia. Foi o último resquício de luminosidade que presenciei desde então.

Todos os direitos à Alves Azziago, do site Contos de Terror.

Bedtime StoriesOnde histórias criam vida. Descubra agora