O pé pesado despenca potência no amável Maverick v8, sombras pardas e borrões enchem os vidros demonstrando uma velocidade incompatível, mais emocionante. A cada curva, os pneus guincham marcando o asfalto liso como serpentes negras em meio ao deserto. As portas travadas passam a impressão de jaula e predador como um só, fundidos no couro bege do banco...
– Certos pensamentos as vezes se materializam... Pensou o homem através do sorriso.
– Se é assim, vou pensar na morte... Falava agora alto, enquanto tocava o volante latente. Segurando como quem segura uma corda num precipício...
Tocou de leve o botão do rádio, aumentando o volume à medida que acelerava...
Mick Jagger enchia cada canto do automóvel com sua voz rouca vibrando através dos anos:
" Por favor, deixe que eu me apresente, sou um homem de riqueza e gosto..."
O homem que se excitava com a música, agora balançava ligeiramente a cabeça, marcando com movimentos a bateria de Charlie watts...
" Ando por aqui faz muitos anos, roubei muito a alma e a fé dos homens..."
Um caminhão passou a centímetros do carro, fazendo com que o homem desse uma guinada rápida na direção para que não morresse de vez (já que morria aos poucos, com atos e palavras...). Raspou gravetos com a lataria direita, espatifando o retrovisor num galho ossudo como mãos de corpos mumificados. Acertou de novo o carro, olhou para trás procurando o caminhão, mas o que ficou foram poeira e arrepios. Começou a sentir uma ereção involuntária (Adrenalina misturada com ânsia de morte...). Gargalhou pensando na lataria rasgando a carne, fechou os olhos, engoliu a seco e prosseguiu...
Como se seguisse um trilho, o Maverick entrou a uns duzentos metros à esquerda, entre a sétima cruz e a lâmpada vermelha do poste...
Entardecia, e aquela visão da poeira ao pôr- do- sol, lembrava àquelas cenas de velhos filmes de zumbis (corra antes do anoitecer, ou eles te pegam...).
O carro ainda não diminuía, abrindo uma cortina de ácaros e fumaça de descarga numa linha imaginária. Dentro do carro, o homem balançava quase histericamente o corpo todo como numa convulsão, enquanto os Rolling Stones sentenciavam no rádio, levando a isca e o anzol até o fim da linha:
"Eu estava lá, quando Jesus Cristo teve seu momento de dúvida e dor ..."
As marchas decresciam... Uma pequena luz vermelha agora marcava a traseira empinada do carro, como um chamariz de moscas para a morte...
O pé trocou de pedal, passou levemente pela saliência da estrada.
Tocou o pau de leve... Voltou os olhos para a estrada... Acelerou, voltou a reduzir...
No rádio, Pet cematary, dos Ramones , diagnosticavam aquela alma...
" Se tudo der errado, vou virar hippie..."
Pensamentos loucos desfilavam no tênue véu que cobriu seu rosto marcado por rugas e expressões de anos de vida...
O carro foi parando lentamente, onde um desordenado desenho de árvores cortadas parecia imitar uma garagem... Ou talvez um triângulo... Quem sabe uma estrela de Davi...
Parou. Agora só a respiração do motor v8 e a do pulmão v45 (velho , 45 anos...) enchiam o ar quase escurecido...
O chão logo depois do carro ,era uma grande picada aberta . Num espaço de 400 metros quadrados de desmatamento e limpeza...
Desceu do carro com as botas Arroyo levando um peso extra nos ombros, Tirando do banco de trás um saco de lona preta que calmamente levou até o centro do espaço aberto... A medida que andava, o homem parecia orar. Olhos cerrados, boca mexendo como se recitasse algo, peito arqueado, respiração grossa...
Depositou o pacote perto de onde um buraco a pouco aberto deixava amostra a terra ainda molhada. Ao lado, pequenas cruzes feitas de gravetos amarrados como grandes rosários, ficavam por cima dos montes de terras remexidos... Mais ou menos quinze, ou talvez trinta...
– É mais uma alma pura, mais um ser que volta ao pó... Falou em voz alta o homem enquanto empurrava o corpo. Ele chorava e revirava as contas do rosário, passando pai nossos e ave marias pelas mãos... Rezando e chorando... Chorando e olhando... Olhando e rindo...
Cerca de dez minutos depois, o velho Maverick assoviava a plenos pulmões pela estrada.
Desta vez, a música e a mente insana iam de Nirvana à James Dean ( quero morrer jovem, para ser um defunto bonito...)
O sopro do vento na mecha loura de seu cabelo desanuviava e proporcionava a ele uma sensação de divindade...
– Poucos humanos podem curar como curo. Poucas mãos podem tocar e levar santidade...
No rádio, Kurt Cobain acabou de dizer adeus pela última vez no mesmo instante em que uma moto ultrapassou-o pela direita, cortando o vazio e enchendo o vácuo de monóxido de carbono...
Olhou para o marcador de velocidade, 90 km por hora...
– Bom piloto... Gosto deles...
A botina começou a comprimir lentamente o pedal direito, enquanto as mãos traçavam no ar uma cruz...
– Já tinha terminado por hoje, mas destino é destino... A ceifa continua...
E acelerando ao máximo, viu se aproximar rapidamente aquela luz que o levaria novamente ao paraíso...
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Bedtime Stories
Короткий рассказ[CONCLUÍDA] Histórias para dormir, ou talvez não. Creepypastas, Contos de Terror, Algumas pitadas de Contos de Horror, Lendas, Relatos e Histórias. Algumas reais, outras não. Cuidado, e Bom sonhos. Posting by @vanartyoon