CAPÍTULO III - DEUS SABE O QUE FAZ

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          A Ilustre dama, no fim de dois meses, achou-se a mais desgraçada das mulheres;  ficou doente. Um dia o marido, perguntou-lhe o que tinha; respondeu tristemente que nada; depois se atreveu um pouco e falou que se sentia tão viúva quanto dantes. E acrescentou: 

          —Quem diria nunca que meia dúzia de lunáticos...   

           Antes de terminar a frase, fitou o teto, com seus olhos negros, grandes, lavados de uma luz úmida, como os da aurora.

           Quanto ao gesto,era o mesmo que empregara no dia em que Simão Bacamarte a pediu em casamento. Em todo caso, o alienista não lhe atribuiu intenção.E não se irritou o grande homem, não ficou sequer consternado. Talvez um sorriso lhe descerrou os lábios, por entre os quais filtrou esta palavra macia como o óleo do Cântico:

          —Consinto que vás dar um passeio ao Rio de Janeiro.

          D. Evarista sentiu faltar-lhe o chão debaixo dos pés. Nunca imaginou que iria no Rio de Janeiro. Agora, principalmente, que o marido assentara de vez naquela povoação interior, agora é que ela perdera as últimas esperanças de respirar os ares da nossa boa cidade;e justamente agora é que ele a convidava a realizar os seus desejos de menina. D.Evarista não pôde dissimular o gosto de semelhante proposta. Bacamarte pegou sua mão e sorriu, com um sorriso que parecia dizer isso: 

            "Não há remédio certo para as dores da alma; esta senhora definha, porque lhe parece que a não amo; dou-lhe o Rio de Janeiro, e consola-se". 

          Mas um dardo atravessou o coração de D. Evarista; não disse ao marido, mas se ele não fosse, ela também não iria, andar pelas estradas sozinha, jamais!

          - Vá com sua tia. - Disse o alienista.

          D. Evarista tinha pensado o mesmo; mas não havia insinuado ou dito.

          - Oh, mas com que dinheiro irei?! - Disse D. Evarista sem convicção.

          - Nós temos muito dinheiro, queres ver? 

           Ele a levou onde estava o dinheiro. Ela ficou deslumbrada, era um via láctea de algarismos.

           Era uma verdadeira opulência.

           Enquanto comia o ouro com os olhos, o alienista disse-lhe em seu ouvido: "Quem diria que meia dúzia de lunáticos..."

            D. Evarista compreendeu, sorriu e respondeu com muita resignação: "Deus sabe o que faz!".

              Três meses depois ela foi ao Rio de Janeiro com a tia, a mulher do boticário, um sobrinho deste, um padre que o alienista conhecera em Lisboa, quatro mucamas,tal foi a comitiva que a população viu dali sair em certa manhã do mês de maio. As despedidas foram tristes para todos, menos para o alienista. Mesmo que as lágrimas de D. Evarista fossem sinceras, não o abalaram. A única coisa que o preocupava, é que podia ter algum louco infiltrado com a gente de juízo. 

              —Adeus! - soluçaram enfim as damas e o boticário.   

              E partiu a comitiva, rumo ao Rio de Janeiro. Crispim Soares, ao tornar a casa, trazia os olhos entre as duas orelhas da besta ruana em que vinha montado; Simão Bacamarte alongava os seus pelo horizonte adiante, deixando ao cavaloa responsabilidade do regresso. Imagem vivaz do gênio e do vulgo! Um fita o presente, com todas as suas lágrimas e saudades, outro devassa o futuro com todas as suas auroras.

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