Enquanto D. Evarista estava em busca do Rio de Janeiro, Bacamarte estudava uma certa ideia nova. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde era pouco para andar na rua.
Um dia de manhã,- eram passadas três semanas,- estando Crispim Soares ocupado em tempera rum medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar.
—Trata-se de negócio importante.
Crispim empalideceu. Que negócio importante podia ser? Daqui a imaginar o efeito do recado é um nada. Tão depressa ele o recebeu como abriu mão das drogas e voou à Casa Verde.
Simão Bacamarte recebeu-o com a alegria própria de um sábio.
—Estou muito contente, - disse ele.
—Notícias do nosso povo? - perguntou o boticário com a voz trêmula.
O alienista fez um gesto magnífico, e respondeu:
- Trata-se de uma experiência cientifica. Digo experiência, porque não me atrevo a assegurar desde já a minha ideia;Trata-se, pois, de uma experiência, mas uma experiência que vai mudar a face da terra.
Disse isto, e calou-se. Depois explicou compridamente a sua ideia. No conceito dele a insânia abrangia uma vasta superfície de cérebros; Os exemplos achou-os na história e em Itaguaí mas, como um raro espírito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de Itaguaí e refugiou-se na história. Assim,apontou com especialidade alguns personagens célebres, Sócrates, que tinha um demônio familiar, Pascal,que via um abismo à esquerda, Maomé, Caracala, etc. E porque o boticário se admirasse de uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma coisa, e até acrescentou sentenciosamente:
—A ferocidade, Sr. Soares, é o grotesco a sério.
—Gracioso, muito gracioso! exclamou Crispim Soares levantando as mãos ao céu.
Quanto à ideia de ampliar o território da loucura, achou-a o boticário extravagante; declarou-a sublime e verdadeira, e acrescentou que era "caso de matraca". Esta expressão não tem equivalente no estilo moderno. Naquele tempo, Itaguaí, que como as demais vilas, arraiais e povoações da colônia, não dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar uma notícia: ou por meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da Câmara.
Eis em que consistia este segundo uso. Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para andaras ruas do povoado, com uma matraca na mão.
O sistema tinha inconvenientes para a paz pública; mas era conservado pela grande energia de divulgação que possuía. Por exemplo, um dos vereadores,—aquele justamente que mais se opusera à criação da Casa Verde. E dizem as crônicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavéis dançando no peito do vereador; afirmação perfeitamente falsa, mas só devida à absoluta confiança no sistema. Verdade, verdade,nem todas as instituições do antigo regímen mereciam o desprezo do nosso século.
—Há melhor do que anunciar a minha ideia, é praticá-la. - disse o alienista.
E o boticário, não divergindo sensivelmente deste modo de ver, disse-lhe que sim, que era melhor começar pela execução.
—Sempre haverá tempo de a dar à matraca.
Bacamarte refletiu ainda um instante, e disse:
—Suponho o espírito humano uma vasta concha, o meu fim; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A Razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia.
O Vigário Lopes disse que aquilo era uma obra absurda.
—Com a definição atual, que é a de todos os tempos, a loucura e a razão estão perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra começa. Para que transpor a cerca?
Sobre o lábio fino e discreto do alienista roçou a vaga sombra de uma intenção de riso, mas não falou nada.
A ciência contentou-se em estender a mão à teologia, — com tal segurança, que a teologia não soube enfim se devia crer em si ou na outra.