Prólogo
Acordei com o som do vento batendo em minha janela – frio e feroz; fazendo sons agourentos que enriçavam os pêlos da minha nuca.
O inverno havia chegado ao distrito doze e notei – com uma pontada de humor negro – que a neve havia congelado a paisagem assim como a vida congelara meu coração; tornando-me uma pessoa quase desprovida de sentimentos. Relutante, levantei-me da minha cama quente e confortável para fechar as janelas que balançavam desamparadas ao vento. Eu tremi quando meus pés descalços tocaram o chão frio do meu quarto, mas ignorei isso e continuei andando decidida até a janela. Quando o fiz, estiquei meus braços para alcançar ambas as partes da mesma – uma vez que elas se abriam para o lado de fora da casa – porém, antes de realizar a tarefa a qual eu havia me submetido, eu avistei uma cena que me deixou sem ação.
Entrando em contraste com toda a paisagem branca e monótona, estava um garoto; trajando agasalhos pesados e escuros, enquanto andava pela vila dos vitoriosos, uma cesta de palha em mãos – esta coberta por um pano branco quase invisível por causa da neve – e os cabelos louros desgrenhando-se devido ao vento forte.
- Peeta. – sussurrei inconscientemente.
Eu não o via desde o meu ataque inesperado quando o vi plantando as Prímulas Noturnas no meu jardim e, por algum motivo, a visão dele andando decididamente até a porta da minha casa me provocou um frio na barriga. Deduzi ser por causa do vento que me atingia enquanto eu observava-o, sorrateira, pela janela aberta. Sacudi a cabeça e fechei a janela, bloqueando o vento, porém, continuei observando-o. Agora ele havia alcançado os degraus de entrada da minha casa. Ele pareceu respirar fundo antes de avançar mais um pouco, ficando fora do alcance dos meus olhos curiosos, e então, ouvi minha porta sendo aberta. Eu não trancava a porta da minha casa – depois de tudo pelo que eu passara, a última coisa que me perturbava era a idéia de alguém invadindo-a para me matar; tenho que admitir que nos momentos mais obscuros do meu dia, eu até almejava isso, aguardava ansiosa alguém com compaixão o suficiente para acabar de vez com minha vida, com meu sofrimento. Os passos de Peeta ecoaram pela casa silenciosa e alguns segundos depois, ouvi o som da minha porta se fechando e Peeta tornou-se visível novamente, agora com as mãos vazias, enquanto seguia o caminho de volta para a sua casa.
Curiosa e atordoada - ainda vestindo as roupas amarrotadas com as quais eu dormira, calcei as minhas botas de caça e desci as escadas às pressas, dirigindo-me para a cozinha, onde, como eu pensara, uma cesta de palha, coberta com um pano branco como a neve, estava repousada sobre a mesa de carvalho.
Minha garganta se fechou e meu coração se contraiu em meu peito.
- Peeta. – murmurei com a voz embargada pelas emoções que me assaltavam.
Sim, ele continuava cuidando de mim; continuava se importando comigo, mesmo eu, imperfeita e egoísta como sou, tendo o ignorado e o julgado.
Quando Prim morreu, eu construí um muro em torno do meu coração, um muro que era a prova de qualquer sentimento que não fosse dor ou remorso; mas agora, presenciando essa breve visita do garoto que me salvou antes mesmo de eu conhecê-lo, senti a crosta de concreto que envolvia meu órgão vital entorpecido rachar e se estilhaçar em uma infinidade de pedaços, tornando-se pó e permitindo-me sentir meu coração bater novamente.
Andei até a mesa da cozinha e levei minhas mãos até a cesta, afagando-a onde os dedos dele deviam tê-la tocado e imaginando esses mesmos dedos tocando meu rosto, entrelaçando-se com os meus como ele costumava fazer antigamente. Uma lágrima quente e solitária escorreu pelo meu rosto marcado por cicatrizes, no exato momento em que eu percebi o quanto sentia falta dele. Engoli em seco e retirei o pano branco de algodão que cobria a cesta, revelando um amontoado de pãezinhos recém saídos do forno, exalando um calor agradável que aquecia meus dedos.
Não consegui mais manter minha frieza habitual diante de tal gesto – repleto de zelo. Meus joelhos fraquejaram , dobrando-se e tocando o chão, enquanto eu me curvava, chorando descontroladamente.
Eu o queria ao meu lado, eu queria cuidar dele, assim como ele estava fazendo comigo; mas eu sabia que isso seria impossível se eu ficasse aqui, afogada em minhas mágoas e remorsos, ignorando o mundo e esquecendo-me de viver. Eu precisava reagir, precisava mostrar que não fora em vão – as mortes, as perdas, as cicatrizes, as lutas, os traumas. Eu precisava fazer valer a pena.
Foi então que as palavras de Haymitch ecoaram em minha mente: Você poderia viver cem vidas e ainda assim não merecer aquele garoto, sabia?
Essas palavras nunca pareceram tão verdadeiras quanto agora.
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Desentorpecendo
FanfictionO inverno havia voltado ao Distrito 12, congelando tudo, tal como a vida congelara o coração de Katniss Everdeen, deixando espaço apenas para a dor e a culpa. Ela decidira permanecer dessa forma por toda a vida: afundada na depressão e nas lembrança...