III - Estrada

103 15 0
                                    

– Você não tem problemas em falar.

Não! (Ele ri) Não tenho. Sei lá, desde sempre eu falei demais.

– E isso é bom. Na verdade é ótimo, vai facilitar muita coisa.

Eu espero que sim.

– Eu vou te fazer algumas perguntas e espero que você me responda com sinceridade. Certo?

Certo. Até porque não faz sentido mentir pra você. Posso mentir pra qualquer de graça. Por que pagaria você pra isso?

(Ela também ri. Ele tem razão, e ela gosta do bom humor dele.)

– O que te trouxe aqui? Você tem medo de algo? Ou algum problema que não entende, algum conflito pessoal ou algum trauma? Primeiro eu preciso que você me explique da forma mais honesta.

Eu não sei bem o que dizer, ou por onde começar, mas tudo bem, preciso tentar.

Eu não sei ao certo quem eu sou, ou como eu sou. Me entende? Acho que isso é o que mais me incomoda.

– Acho que entendo. Mas consegue me explicar um pouco melhor isso?

Sim, é claro.

Acontece que eu sou um cara normal, como consegue ver. 26 anos, estatura mediana, branco, e aparentemente feliz. Me visto bem, me alimento bem, leio bons livros, assisto bons filmes, tenho amizades saudáveis.

– E você se sente mal sendo assim?

Não! Não é quem eu sou que me incomoda, isso que te descrevi, é meu lado comum, é a primeira impressão que se tem de mim. Eu só me sinto mal sendo espelho pras pessoas, sendo o exemplo perfeito.

– Acho que entendi. Claro. Vamos aos poucos te conhecendo então. Fale mais.

Como quando eu era criança... – eu gosto de lembrar disso, sabe? Por mais fúnebre que seja, eu não consigo esquecer. – Quando eu era criança eu quis pela primeira vez fugir de casa. Tá que era algo normal, ao menos de se esperar que passa na mente de uma criança crescendo em um lar como o meu, sempre saltando de casa em casa, mas eu tinha apenas seis anos de idade, fugir de casa não devia ser um pensamento a se levar a sério por uma criança. Mas eu levei.

Eu saí de casa no meio da tarde, fazia um pouco de frio, então eu só levei um agasalho. É engraçado lembrar, sabe?, porque era algo inocente, eu tinha certeza quando fiz aquilo que se saísse andando pela rodovia uma hora ou outra eu chegaria à São Paulo e logo encontraria minha mãe.

– Você não cresceu com sua mãe?

Não! Nos separamos quando eu tinha quatro anos, mas é outra história, outro trauma, digamos assim. E sobre eu ter fugido de casa, não era tão por ela, eu não estava indo porque queria voltar pra ela, eu só queria ir pra outro lugar, me encontrar em outro lugar, onde eu pudesse ser tratado como o menino de seis anos que eu era, não como o menino abandonado deixado à porta de casa à boa vontade de quem o recebesse. Não era também uma questão de cuidado, eu era bem tratado ali, estava com minha família, metade dela ao menos, mas eu não tinha amor, eu não sentia carinho vindo de nenhum deles.

Então eu decidi que tinha de sair dali, assim, porque eu não tinha voz, eu não era ninguém pra eles, era o filho do pai irresponsável fora de um casamento mal acabado, eu era só um bastardo que eles tinham de aceitar.

Eu saí de casa, assim, sem dizer pra ninguém.

Eles não me notavam, nunca, senão quando devia comer ou ir dormir; meu nome não significava nada, então eles quase nunca o chamavam. Abri o portão da frente e saí sem medo, sem me preocupar com nada, confiante e corajoso, na direção da rodovia principal que cortava a cidade onde eu morava.

O que mais me fascina hoje era a coragem que eu já tinha quando era criança, eu simplesmente não tinha medo se me pegassem fugindo, se me prendessem, me batessem ou o que quisessem fazer, não tinha medo de ser atropelado no acostamento, não tinha medo de ser roubado por qualquer um na estrada.

Sempre disseram que sagitário é um signo que tem sorte, eu não sei se você acredita nisso, mas nesse ponto eu concordo.

Eu fui andando até sair da cidade, e ninguém me notou, ninguém me parou, eu simplesmente fui andando alheio à tudo, e tudo alheio à mim. Eu passei o posto de gasolina, as últimas casas, a bica de água natural, a ponte do rio e então eu já havia andado tantos quilômetros quanto eu sabia contar na época.

– Você não voltou?

(Suspirou.) Sim, eu voltei.

Eu andei tanto, sozinho, e queria que alguém me notasse, como eu disse antes, eu não estava fazendo aquilo porque queria voltar pra minha mãe, eu queria que notassem que eu estava fugindo, eu queria que eles vissem que eu estava mal com aquilo, queria que eles percebessem que eu também sentia as coisas, assim como era ruins para eles me terem ali, era ruim pra mim também ficar.

Mas eu cheguei num ponto onde percebi que não havia mais nada para se fazer perceber, eu estava tão longe que se continuasse andando logo escureceria e eu não chegaria a lugar nenhum. Então a razão veio sobre mim, maior que minha coragem, eu parei pra pensar, e vi que era inútil, eu não ia chegar nunca onde queria chegar. Então eu comecei a pensar como um adulto. O que eu acharia de uma criança de seis anos andando sozinha na beira da estrada? Eu me importaria? E quantos mais carros passavam ao meu redor eu comecei a perceber que ninguém se importava, ninguém estava nem ai pra mim, pro que eu estava sentindo, fazendo ou querendo. Eu ia andar muito ainda, até não aguentar mais, de sede e de fome eu ia cair na beira do asfalto e ninguém ia me ver, ninguém pararia para me ajudar, então eu ia morrer, e ficar ali pra sempre, apodrecendo sob o sol.

Eu olhei pra um lado, depois pro outro, e vi que era loucura, eu estava ficando louco, era a única explicação. Eu só conseguia pensar a mesma coisa que eu penso hoje, que eu era um menino de seis anos, querendo atenção, querendo que alguém olhasse pra ele e perguntasse o que ele sentia. Mas eu estava fugindo, eu fugi a vida toda, eu me escondi pra sofrer.

Eu voltei alguns metros, e me sentei perto de uma árvore, onde os fazendeiros deixavam o leite pras carroças levarem pra cidade, e fiquei ali, com os pés sem tocar no chão, num banco maior que eu, chorando sozinho.

– E isso fez mudar alguma coisa? Quando você voltou?

Não! Não mudou nada. Quando eu voltei estava escuro já, eu cheguei emcasa, entrei pelo portão da frente, e foi como se eu nunca tivesse saído.Quando me viram mandaram-me para o banheiro, eu tomei meu banho, jantei e fuidormir.},

Menino-JúpiterWhere stories live. Discover now