Capítulo 2

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No decorrer da faculdade muita coisa aconteceu, mas eu não me apegava às distrações facilmente. Depois da Mel eu tive uns poucos namoricos de fim de semana, mas nada durava além de umas poucas saídas.

No final do último semestre nos reunimos para finalizar as apresentações do trabalho de conclusão de curso. Tínhamos apenas mais cinco dias como estudantes e antes de finalmente nos considerarmos formados, prontos para um próximo passo. Marquei na minha casa com a Mel, a Fernanda e a Joana, para analisarmos uns aos outros, sendo que o meu já havia sido passado e repassado uma dezena de vezes.

Tínhamos definido temas previamente e cada um ia apresentar casos sobre um determinado perfil de paciente. Minha irmã passou por nós, despedindo-se com uma cara de "a noite vai ser longa", e até me senti um pouco constrangido diante delas, tendo em vista que nossas posturas eram completamente opostas. Após quase seis horas de bate-papo, percebemos, entre lágrimas (delas, é claro) e gargalhadas (delas também), que havíamos falado sobre diversos assuntos, mas que o estudo havia ficado perdido entre casos e confissões bastante reais (delas também). Tomamos algumas garrafas de vinho barato, ouvimos música e pegamos no sono deitados no carpete da sala. Lembro-me como se fosse hoje: estávamos eu e a Mel enroscados quando minha irmã passou pela sala, voltando da farra.

O sol já havia nascido e ela estava com aquela maquiagem borrada de quem dançara na chuva... ou chorara. Lara era (e ainda é) três anos mais velha do que eu, vivia em festas e grandes eventos das quintas aos domingos, tinha um namorado por semana e uma capacidade ímpar de se apaixonar pelo primeiro esperto que soubesse falar as palavras certas.

Mas no último ano ela havia engrenado um romance torto com um cara que era amigo dela da época de colégio e parecia estar muito feliz. Nas poucas vezes em que os tinha visto juntos, tive a impressão de que ele era meio cafajeste, mas a Lara não me dava espaço para tocar neste assunto. Pelo contrário. E mesmo já sendo adulto, ela não perdia o costume de me chamar de "Gabi pirralho".  Uma mulher inteligente, linda e de baixa autoestima.

Sorte da Fernanda e da Joana, que tinham se mandado no meio da noite, porque após a Mel ser expulsada de casa sem a menor cerimônia, a Lara se sentiu no direito de me dar uma breve lição de moral sobre como uma mulher se sente após ser usada por um rapaz que jamais vai assumi-la além de uma aventura. Disse que como eu tinha tido coragem de fazer aquilo na sala da casa dos nossos pais, que ao menos eu deveria pagar um motel para não expor a família àquela situação embaraçosa. Foi difícil, mas acho que consegui convencê-la de que éramos apenas amigos que haviam adormecido de cansaço após uma noite de muito estudo, regada a vinho tinto barato comprado no mercadinho da esquina.

Como se já não fosse suficiente ela me imaginar capaz de promover uma noite dessas no recanto da família, ela surtou e trancou-se no quarto. Passou dias sem abrir a porta e nos perguntávamos se ela ao menos estava se dando ao trabalho de escovar os dentes ou tomar um banho. Deixávamos bandejas com lanches na porta e as recolhíamos sem serem tocadas horas depois. Flagrava a minha mãe escutando pela extensão do telefone e nada que eu falasse sobre privacidade adiantava. Depois de alguns dias, não me lembro bem de quantos, decidi bater na porta dela para saber o que estava acontecendo.

— Lara, sou eu. Abra a porta. Estamos todos preocupados e acho que você não vai ficar muito feliz de saber que nossa mãe voltou no tempo e passou a fiscalizar suas ligações pela extensão da cozinha.

Silêncio.

— Lara, nós só queremos saber se você está bem, se precisa de alguma coisa, se quer falar o que está acontecendo. Olha, desculpa por aquela noite... na sala... com as meninas da faculdade... Você pode até não acreditar, mas eu juro que é verdade. Não aconteceu nada entre a gente. A Mel até tem um namorado, um tal de Kiko... Chico... sei lá... Não me lembro de tudo, mas estávamos tão exaustos que pegamos no sono.

Ela abriu a porta, agarrou a minha camisa e me puxou para dentro com tudo, perguntando:

— Você é louco? Gabriel, acorda para a vida! Você acha que o mundo gira em torno do seu umbigo e das suas "aventuras adolescentes"? As pessoas são más, os políticos mentem e os nossos ídolos não são tão perfeitos quanto imaginamos. Há muito mais vida lá fora e você está aqui, perdido em meio à segurança protecionista dos nossos pais, preso às palavras de um monte de loucos que ninguém nem sabe se realmente escreveram aqueles livros sobre a mente humana. E o pior de tudo... você está aprisionado aos seus próprios medos. Amar fere e assumir-se quem é verdadeiramente também.

Seus olhos não estavam vazios. Ela parecia estar perturbada e eu me calei. Fiquei com aquela expressão de quem foi pego de surpresa, de quem nem sabe o que falar porque não esperava aquela atitude, aquela chuva de insultos, afinal de contas a minha intenção era a melhor. Queria aliviá-la, pois até então imaginava que seu isolamento esquisito havia começado após o flagra na sala de estudos. Eu a amava incondicionalmente e faria qualquer coisa para confortá-la. Tive vontade de botá-la no colo, pois sabia, pela sua feição, que ela havia acumulado noites seguidas de lágrimas. A angústia era contagiante e a minha reação covarde foi contrária a todos os meus princípios: virei as costas e a deixei sozinha.

O quarto do sonhoOnde histórias criam vida. Descubra agora