A infância de Angélica no Castelo campestre

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- Babá - perguntou Angélica -, para que Gil de Retz matava as crianças?
- Para o demônio, filhinha. Gil de Retz, o papão de Machecoul, queria ser o senhor mais poderoso de seu tempo. Em seu Castelo havia somente retortas, frascos e panelas repletas de caldos vermelhos e vapores espantosos. O diabo pedia que lhe oferessem em sacrifício o coração de uma criaturinha. Assim tiveram início os crimes. É as mães aterrorizadas apontavam com o dedo o negro torreão de Machecoul, rodeado de corvos, tantos eram os cadáveres de crianças inocentes que havia em seus calabouços.
- E ele comia todas? - perguntou, com voz trêmula, Madelon, a pequenina irmã de Angélica.
- Não todas. Não teria podido - respondeu a ama.
Curvada sobre o caldeirão em que o toucinho e a couve desviam lentamente, mexeu a sopa alguns instantes em silêncio.
Hortênsia, Angélica e Madelon, as três filhas do barão de Sancé de Monteloup, de colher em punho junto às suas escudelas, esperavam ansiosamente o prosseguimento da história.
- Havia algo pior que comê-las -continuou por fim a ama, com a voz amarga. - Primeiro fazia levar à sua presença o pobrezinho ou a pobrezinha, que, tremendo de medo, gritava por sua mãe. O senhor, deitado em seu leito, rejubilava-se com o pavor da criaturinha. Depois, mandava pendurá-la na parede, em uma espécie de forca que lhe ua apertando o peito e o pescoço, estrangulando-a, embora nao o bastante para matá-lá. A criança estrebuchava como um frango pendurado, seus gritos se extinguiam, os olhos esbugalhavam-se e ela se tornava azul. Na grande sala não se ouviam senão os risos dos homens cruéis e os gemidos da pequena vítima. Então, Gil de Retz mandava despendurá-la, punha-a sentada sobre os joelhos e apoiava ao peito a fronte do pobre anjinho. Falava-lhe com doçura. " Não foi nada grave", dizia. "Não queríamos senão divertir-nós, mas ja terminou." Então dar-lhe-iam doces, teria um formoso leito com um colchão de penas, uma roupa de seda como a de um pajenzinho. A criança se tranquilizava. Um brilho de alegria cintilava em seus olhos cheio de lágrimas. Então o senhor, subitamente, enterrava-lhe a adaga no pescoço. O mais espantoso, porém, era quando raptava moças novas.
- Que lhes fazia? - perguntou Hortênsia.
Foi ai que interveio o velho Guilherme, que, sentado a um canto, junto ao fogão, falava um pedaço de fumo. Resmungou com a sua barba amarelada:
- Cala-te, velha louca! Até mesmo a mim, que sou um guerreiro, me agitar o coração com tuas histórias fantásticas.
A rude Fantina Lozier retrucou-lhe com vivacidade:
-Histórias fantásticas!.... Vê-se logo que não nascestes no Poitou, Guilherme Lützen. Basta caminhares um pouco em direção a Nantes e logo encontrarás o Castelo maldito de Machecoul. Já faz dois séculos que se cometeram os crimes e, no entanto, as pessoas que passam pelas redondezas ainda se benzem. Mas tu não és desta terra e nada sabes de seus antepassados.- Belos antepassados, se todos forem como vosso Gil de Retz! 

- Gil de Retz foi tão grande no mal que nenhuma terra além do Poitou pode orgulhar-se de ter tido um criminoso como ele. É quando merreu, julgado e condenado em Nantes, mas batendo no peito, confessando sua culpa e pedindo perdão a Deus, todas as mães cujos filhos ele havia torturado e comido puseram luto por ele.

- Isso, sim, é que é grandioso! -exclamou o velho.
- Assim somos nós,do Poitou. Grandes no mal, grandes no perdão!
Carrancuda, a ama dispôs as panelas sobre a mesa e abraçou com ardor o pequeno Dionísio.
- É verdade - disse - que fui pouco à escola, mas sei distinguir entre uma história para espantar o sono e uma narrativa dos tempos antigos. Gil de Retz foi um homem que existiu de verdade. Sua alma talvez ainda erre por perto de Machecoul, mas sei corpo apodreceu nesta nossa terra. Por isso nao se deve falar dele frivolamente, como das fadas e dos duendes que passeiam entre as grandes pedras dos Campos. Também não é conveniente troçar demasiado de tais espíritos malignos...
- E dos fantasmas, minha bá, pode-se troçar? - perguntou Angélica.
- É melhor não troçar, querida. Os fantasmas não são maus, mas a maioria deles são tristes e desconfiados, e para que aumentar com zombaria os tormentos desses infelizes?
- Porque Chora velha senhora que aparece no castelo?
- Quem pode saber? A última vez que me encontrei com ela, há seis anos, entre a antiga sala da guarda e o grande corredor, pareceu-me que já não chorava, talvez graças às preces que vosso avô mandou rezar por sua alma na capela.
- Eu ouvi seus passos na torre afirmou Nanette a criada.
- Devia ser um rato. A velha dama de Monteloup é discreta e não quer fazer mal a ninguém. Talvez tenha sido cega, pois sempre estende a mão para frente como se procurasse tatear. Ou então procura alguma coisa. Às vezes aproxima-se das crianças adormecidas e passa-lhes a mão no rosto.
A voz de Fantina tornava-se lúgubre.
- Quem sabe se não procura alguma criança morta?
- Boa mulher, tens o espírito mais macabro que a paisagem de um ossário - voltou a protestar pai Guilherme - é possível que teu Senhor de Retz, do qual tanto te orgulhas de ser conterrânea, há dois séculos de distância, seja um grande homem e que a senhora de Monteloup seja muito respeitavel, mas afirmo-te que não fica bem perturbar estas crianças, já tão assustadas que se esquecem de comer.
- Fazes-te agora sensível, grosseiro soldado, grivois¹ do demônio! Quantos ventres de criaturas como essas não terás atravessado com sua lança quando servias o Imperador da Áustria nos campos da Alemanha, da Alsácia e da Picardia? Quantas palhoças Não incendiaste, fechando a porta para torrar lá dentro a família toda? Nunca enforcas-te nenhum aldeão? Foram tantos que até se gastaram os Ramos das arvores! E as mulheres e as moças não mas violaste até matá-las de vergonha. [¹chamava-se "grivois" aos soldados debandados que, terminadas as guerras, percorriam os campos cometendo toda espécie de atrocidades. (N. do E.)]
- Como todo mundo, como todo mundo, boa mulher. Essa é a vida do soldado. Isso é a guerra. Mas a vida dessas crianças que aqui vemos é feita de brincadeiras e histórias alegres.
- Até o dia em que passarem pelo povoado os soldados e os bandidos, como nuvens de gafanhotos. Então, a vida das crianças se converterá na vida do soldado, da guerra, da miséria e do medo...
Amargurada, a Ama destampava uma grande panela de barro cheia de patê de lebre, e passava manteiga em fatias de pão que distribuia em volta, sem esquecer o velho Guilherme.
- Esta que vos fala... eu, Fantina Lozie escutai-me, filhas...
Hortência, Angélica e Madelon que haviam aproveitado a discussão para esvaziar a suas escuderias, levantaram de novo a cabeça e Gontran, seu irmão de 10 anos, saiu do canto escuro em que estava amuado e aproximou-se da mesa. Havia chegado a hora da guerra e dos saques, da soldadesca e dos bandidos, tudo confundido no mesmo clarão vermelho dos incêndios, no retinir das espadas, nos gritos lancinantes das mulheres...
- Guilherme Lützen, tu conheces meu filho, que é carroceiro do nosso amo, o Barão de Sancé de Monteloup, aqui mesmo, neste Castelo?
- Conheço. É um belo rapaz.
- Pois tudo o que posso dizer de seu pai é que fazia parte dos exércitos do Senhor cardeal de Richelieu, quando este se dirigia para La Rochelle a fim de exterminar os protestantes. Eu não era huguenote, e sempre rezara à Virgem Santíssima para conservar a castidade até o casamento. Mas, depois que as tropas do nosso cristianismo Rei Luís XIII passaram pela região, o mínimo que posso dizer é que havia deixado de ser donzela. E dei a meu filho o nome de João Couraça, em memória de todos aqueles demônios, um dos quais é seu pai, cujas couraças cheias de cravos rasgaram a única camisa que eu possuía naquele tempo... E quanto aos saqueadores e bandidos que a forma tirou tantas vezes nos caminhos, poderia manter-vos acordados a noite inteira contando-vos o que me fizeram entre a palha do celeiro, enquanto queimavam os pés de meu homem no fogo da lareira para fazê-lo confessar onde guardava as economias e eu supunha, pelo cheiro, que assavam o porco.
Ao recordá-lo, a grande Fantina pos-se a rir; depois bebeu aguapé de maçã para refrescar a língua, que havia secado de tanto ela falar.
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Assim, a vida de Angélica de Sancé de Monteloup teve inicio sob o signo do Ogro, dos fantasmas e dos saqueadores.
A Ama tinha nas veias um pouco daquele sangue mouro que os árabes levaram, pelo século XI, até os umbrais do Poitou. Angélica mamara aquele leite de paixão e de sonhos em que se concentravam antigo espírito de sua província, terra de pântanos e de bosques, aberta como um golfo aos tépidos ventos do oceano.
Assimilara confusamente o mundo de dramas e de histórias de fadas. Tinha tomado gosto por ele e adquirido uma espécie de imunidade contra o medo. Olhava com pena para sua irmã mais nova, Madelon, que tremia, ou para a mais velha, Hortência, muito reservada, e que, no entanto, morria de desejo de perguntar à ama o que lhe haviam feito os bandidos entre a palha do celeiro.
Angélica, aos 8 anos, adivinhava muito bem o que havia sucedido no palheiro. Quantas vezes não havia levado a vaca ao touro ou a cabra ao bode? E seu amigo, o pastorzinho Nicolau, explicara-lhe que para ter filhos os homens e as mulheres faziam o mesmo. Fora assim que a ama tivera João Couraça. Mas o que intrigava Angélica era que, ao falar de tais coisas a ama adotava, às vezes, uma entonação lânguida e de êxtase, e outras a do horror mais sincero.
Mas não era necessário procurar compreender a ama, seus silêncios, seus arroubos de cólera. Era suficiente que estivesse ali, grandalhona, sempre em movimento, com seus braços robustos, seu regaço amplo formado pela saia de fustão, e que neles acolhesse as crianças como passarinhos, para entoar-lhes uma cantiga de ninar ou falar-lhes de Gil de Retz.
Mais simples era o velho Guilherme Lützen, que falava com uma voz lenta e de acento áspero. Diziam que era suíço ou alemão. Ha 15 anos o haviam visto chegar, coxeando e descalço, pela estrada romana que vai de Angers até St.-Jean d'Angély. Entrou no castelo de Monteloup e pediu uma escudela de leite. E ali ficou como criado para tudo: ferreiro, carpinteiro, correio do Barão de Sancé, que o mandava levar suas cartas aos seus amigos e o encarregava de receber o agente fazendário quando vinha cobrar os impostos. O velho Guilherme eu escutava-o com muita calma e respondia-lhe no seu dialeto de montanhês suíço ou tirolês, e aquele funcionário acabava indo embora descoroçoado.
Tinha vindo dos campos de batalha do norte ou do leste? E por que motivo aquele mercenário estrangeiro parecia proceder da Bretanha quando encontraram? Tudo quanto sabiam dele era que havia estado em Lützen sob as ordens do condottiere Wallestein e que havia tido a honra de atravessar a pança do gordo e magnífico rei da Suécia, Gustavo Adolfo, quando este perdido na neblina, no decorrer da batalha, esbarrou com os lanceiros austríacos.
No sótão em que habitava viam-se brilhar o sol, entre as teias de aranha, sua velha armadura e seu capacete, no qual continuava bebendo seu vinho quente e, às vezes, tomava sopa. Sua imensa lança, três vezes mais alta que ele, servia-lhe para sacudir as nogueiras no tempo da colheita. Mas, acima de tudo, Angélica inveja-lhe o pequeno picador de fumo. Era de concha marchetada, e Guilherme chamava-o de sua grivoise, segundo o hábito dos militares alemães a serviço da França, que recebiam a alcunha de grivois.

Angélica - Marquesa Dos AnjosOnde histórias criam vida. Descubra agora