A chegada do homem negro_ O irmão de Angélica foge para a América

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Ocorreu depois o incidente do "visitante negro", Foi recordado por Angélica mais profundamente e por muito mais tempo. Longe de abater e mortificar, como o haviam feito os hóspedes anteriores, o visitante trouxe, com suas palavras estranhas, uma esperança que haveria de acompanhar a jovem no transcurso de sua vida, uma esperança tão arraigada que nos momentos de angústia vividos mais tarde bastava-lhe fechar os olhos para rever aquela tarde chuvosa de primavera, na qual o homem havia aparecido.

Angélica estava na cozinha como de costume. A seu redor brincavam Dionísio, Maria Inês e o pequeno Alberto. O caçula estava no berço, perto do fogão. Para as crianças, a cozinha era a mais bela peça da casa. O fogo ali ardia todas as horas e quase sem fumaça, pois a chaminé era muito alta. A luz daquele fogo perene dançava e refletia-se nos fundos vermelhos de caçarolas e de pesados tachos de cobre, que pendiam das paredes. O retraído e pensativo Gontran passava horas inteiras observando a cintilação daqueles reflexos, nos quais enxergava estranhas visões, e nos quais Angélica reconhecia os gênios tutelares de Monteloup.

Naquela tarde Angélica estava preparando um pastelão de lebre. Já tinha dado à massa a forma de torta, e estava picando a carne. Ouviu-se o tropel de um cavalo.

_ É teu pai que volta _ disse tia Pulquéria. _ Angélica creio que devemos ir ao salão.

Depois de curto silêncio, durante o qual o cavaleiro deve ter-se apeado, soou a campainha da porta de entrada.

_ Vou atender _ gritou Angélica.

E precipitou-se, com as mangas arregaçadas e os braços sujos de farinha. Através da chuva e da bruma distinguiu um homem alto e magro de cuja capa escorria água.

_ Abrigastes vosso cavalo? _ perguntou. _ Aqui os animais se resfriam facilmente. Há demasiada névoa, por causa dos pântanos.

_ Agradeço-vos, senhorita _ respondeu o forasteiro, tirando o grande chapéu de feltro e fazendo uma reverência. Tomei a liberdade, segundo o costume dos viajantes, de levar o meu cavalo e a bagagem para a vossa estrebaria. Como me achava demasiado longe do meu destino, e passava perto do Castelo de Monteloup, decidi-me a solicitar do senhor barão hospitalidade por uma noite.

Pelo traje de grosso tecido negro, apenas adornado com um colarinho branco, Angélica pensou que se tratasse de um pequeno comerciante ou de um camponês em roupa domingueira. Mas seu acento, que não era da região e parecia um pouco estrangeiro, a desconcertava, bem como a linguagem rebuscada.

_ Meu pai ainda não voltou para casa, mas vinde aquecer-vos na cozinha. Mandaremos um moço cuidar do animal.

Quando voltou à cozinha, à frente do visitante, seu irmão Josselino acabava de entrar pela porta dos fundos. Coberto de lama, e com o rosto vermelho e sujo, ia arrastando pelas lajes do chão um javali por ele morto. 

_ Boa caça, senhor? _ perguntou o forasteiro com muita cortesia.

Josselino lançou-lhe um olhar pouco amável e respondeu com um grunhido. Sentou-se, depois, em um tamborete e estendeu os pés para o lume. Mais modestamente, o visitante sentou-se também junto ao fogão e aceitou um prato de sopa que Fantina lhe ofereceu. Explicou que era originário do país, pois havia nascido perto de Secondigny, mas que, por ter passado muitos anos viajando, falava com sotaque estrangeiro a sua própria língua.

_ Mas perdê-lo-ei prontamente _ afirmou. Não fazia mais de uma semana que desembarcara em La Rochelle. 

Ao ouvir as últimas palavras, Josselino levantou a cabeça e fitou-o com olhos brilhantes. Os meninos rodearam-no e começaram a crivá-lo de perguntas.

Angélica - Marquesa Dos AnjosOnde histórias criam vida. Descubra agora