Capítulo 23

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Foi clara a mudança de comportamento de dona Ana desde o dia da briga no colégio. Duas coisas diziam que minha mãe estava preparando alguma coisa. A primeira delas era a forma segura como ela nos olhava. Ao contrário de suas doces palavras, seus olhos sempre diziam: Deixe estar! Deixe estar! Deixe estar! E isso valia também para meu pai, apesar de ele nunca ter percebido. A Segunda tinha tudo a ver com a Lídia. Nunca as duas conversaram tanto. Era só eu chegar, para que elas - sem muita habilidade - mudassem de assunto.
Na semana após a suspensão de três dias, estava saindo do colégio quando vi minha mãe no portão:
O que foi, mãe? Aconteceu alguma coisa?
Não aconteceu nada, filho.
Então o que a senhora está fazendo aqui?
Tentando resolver um problema.
Sem entender nada, fui com ela até o carro que estava estacionado poucos metros à frente, com a Lídia ao volante. As duas estavam muito estranhas e nervosas. Minha mãe olhou várias vezes para os lados antes de entrar no Fiat. A Lídia então acelerou de um jeito - até cantou pneus - que por pouco não batemos na traseira de um caminhão de lixo.
Preste atenção no que vou te dizer, Marcus.
Ok, mãe.
Nós vamos levar você a um lugar que de início pode parecer estranho, mas foi muito bem recomendado.
Que lugar é esse, mãe?
Antes de dizer o que é, quero de você o compromisso de guardar segredo. Ultimamente, seu pai e eu estamos discutindo muito por sua causa, e em hipótese alguma, ele deve saber do lugar aonde estamos indo.
Prometi segredo. Mas tive a impressão de que a resposta não importava muito. Iríamos de qualquer jeito.
Na casa aonde vamos será feito um 'trabalho' que tem como objetivo livrar você de todas as influências negativas provocadas por espíritos sem-luz.
Mãe? A senhora está falando de macumba? É isso?
Eu estou falando de pessoas que podem resolver o seu problema, Marcus! Esse rapaz a quem chamam de 'Zelador', foi muito bem indicado e já ajudou muita gente com problemas parecidos com o seu.
Lídia entrou na conversa:
O nome dele é Jorge, Ana.
Mãe, eu não vou falar com Jorge nenhum!
Vai, sim! Você me deve isso.
Minha mãe começou a chorar.
Marcus, sua mãe e eu já conversamos com o Jorge. Você só está assim por causa de um espírito zombeteiro. O objetivo do trabalho é justamente afastá-lo.
Mas, Lídia…
Ela não me deixou falar e continuou:
Marcus, o Jorge explicou que isso é uma cobrança de 'santo' e no seu caso é uma 'santa' que está na frente.
Lídia, eu sei o que sinto. E pode ter certeza que não é por causa de nenhum espírito que encostou em mim. Aliás, não conheço nenhuma pessoa que era e deixou de ser.
Nós também não conhecemos pessoalmente, mas existe.
Minha mãe voltou para a conversa:
Marcus, uma amiga de uma amiga da Lídia garante que o filho de uma governanta de uma outra amiga sua foi curado pelo Jorge. Tentamos localizar essa governanta, mas ela está em alguma cidade do Nordeste e ninguém sabe o endereço.
Mãe, você falou em cura. Eu não estou doente.
Silêncio.
Marcus, nós estudamos bem o assunto. O Jorge explicou que essa cobrança de 'santo' ou de 'corpo' é proveniente de outras reencarnações. Esse rapaz é do candomblé, que nada mais é do que a religião dos negros iorubas na Bahia. Lídia e eu vimos no dicionário que ioruba é uma língua de um povo que vive na África Ocidental.
As duas acreditavam mesmo que o Zelador, como num passe de mágica, me transformaria de uma hora para a outra numa pessoa 'normal'.
Como é esse trabalho, mãe?
Lídia respondeu:
Esse trabalho tem o nome de ebó. O ebó serve para livrar o corpo de alguém da influência de um espírito sem-luz. Ele tem como objetivo afastar a cobrança do corpo pelo santo.
O meu espírito está sem luz?
Não. O espírito que está sem luz é o do zombeteiro.
Mas como é esse trabalho, Lídia?
Isso você verá na hora. Mas não precisa se preocupar.
Marcus?
Fala, mãe.
Primeiro, é importante ter respeito por essa religião e depois fazer aquilo que o Zelador pedir para você fazer.
Confesso que me sentia cansado. Por mim, estaria jogado na cama em completa escuridão, sem porra de religião nenhuma.
Lídia? Dá para você desligar o ar-condicionado? Vou abrir o vidro.
Estava acendendo um cigarro quando minha mãe disse:
Está vendo só, Lídia? Ele não fumava! Aliás detestava cheiro de cigarro e agora, por causa do espírito zombeteiro, até fuma.
Demoramos muito a chegar. A casa do Jorge ficava na periferia de São Paulo, num lugar extremamente pobre. Estacionamos o carro numa rua de terra, bem em frente ao número cento e quarenta e um. Crianças descalças - algumas de shorts e outras não - cercaram o carro. Descemos do Fiat em meio a um milhão de pedidos e, até alguém abrir o portão, crianças e cachorros nos rodeavam. Entre a rua e a entrada da casa - não havia calçada - tínhamos que pular uma pequena vala. Pulamos os três, mas Lídia, num pequeno deslize, acabou mergulhando o pé esquerdo naquela bosta.
Lídia! De novo!
Você quer o quê, Ana? Com esses cachorros em cima da gente e essas crianças que não param de pedir coisas!
Lave o pé quando entrarmos. Em casa passaremos álcool como da outra vez.
O lugar era muito estranho. Além de velha, a casa fora pintada num azul meio esbranquiçado, que não tornava o ambiente nada agradável. No quintal, entre inúmeros gatos, galinhas andavam soltas sem maiores problemas. Ficamos os três sentados num banco de madeira esperando sermos chamados. Já me distraía com uma galinha, quando uma moça fez sinal para eu entrar.
Eu?
É.
Olhei para minha mãe e perguntei:
E vocês? Não vão entrar comigo?
Nós esperaremos aqui. Vá logo, Marcus. Não deixe o Zelador esperando.
Mas, mãe…
Vá logo, Marcus.
Fui levado até um salão e lá fiquei junto com a moça, esperando o Zelador chegar. Ela era muito tímida, pois além de ficar totalmente quieta, quando me olhava, o fazia de rabo de olho. Comecei a puxar conversa:
Como é o seu nome?
Zinha.
Como?
Zinha.
A moça tinha a língua presa. Meio fanhosa no falar. Segurei o riso.
Ah, tá… que lugar é esse?
Roncó.
Ah, tá.
Algumas coisas me chamavam a atenção naquele lugar. Primeiro, não existia uma imagem de santo sequer. Segundo, vários pratos de barro - contendo uma série de coisas dentro - formavam um círculo no centro do salão e, bem no meio dele, uma pequena esteira. Terceiro, o que mais parecia com um altar estava cheio de enormes vasos de barro, pedras, pratos, bacias, tridentes e muitas velas nas cores branca, azul e lilás.
Marcus!
Era o Zelador. Ele devia ter entre trinta e cinco e quarenta anos no máximo. E pior, tinha um jeito meio afeminado. Nos cumprimentamos de uma forma totalmente diferente, quase que cruzando e batendo os pulsos um no outro. Após ter dado ordens para a fanhosa sair, ele começou a falar:
Sua mãe já deve ter conversado com você. O que vamos fazer aqui é uma oferenda. Que tem como resultado afastar a cobrança do corpo.
Ok. Vamos lá.
Enquanto me preparo, vá até aquele segundo salão, tire toda a sua roupa, inclusive a cueca, e vista esta roupa de ração.
Ok.
A roupa de ração nada mais era do que uma calça e uma camisa, bem largas, feitas de saco branco. Daqueles de farinha para fazer pão. Voltando, o Zelador me fez ficar de pé sobre a esteira no centro do círculo, que ele chamou de 'Círculo de Oberó'.
O que tem nesses pratinhos, Zelador?
Várias coisas, entre elas: feijão branco, feijão preto, canjica, milho, milho de pipoca, quirera, pano branco, mel, acaçá e velas. No caso das comidas, todas foram torradas.
O que é acaçá?
Acaçá é um bolo de milho ralado, quase um mingau, embrulhado em folhas de bananeira. Você pergunta muito.
O que ele queria? Se estava no meio de tudo aquilo, eu precisava saber o que rolava.
Com os braços erguidos, Marcus, mantenha o prato com acaçá sobre a cabeça até o final dos trabalhos. E a partir de agora, fique em completo silêncio que vou começar.
Usando palavras estranhas, o Zelador iniciou o ebó. Acho que devia estar tomado por algum espírito, pois sua expressão facial mudou por completo. Prato a prato, ele retirava pequenas quantidades de comida e, esfregando-as entre as mãos, passava por todo o meu corpo, sempre  do pescoço para baixo. Todo esse movimento era acompanhado por canto e palavras na língua africana, pelo próprio Zelador. As velas, então, foram todas quebradas no meu corpo.
Devíamos estar nos aproximando do final, já que faltavam apenas dois pratos: o com mel, no chão, e o acaçá sobre a minha cabeça. Me fazendo ficar fora do círculo por alguns minutos, ele recolheu todos os restos de comida sobre a esteira, para só depois utilizar os dois pratos finais. O acaçá ficou no lugar da esteira, com o mel derramado sobre ele. Novamente sua expressão facial mudou.
Tire sua roupa, Marcus.
Ele colocou a roupa de saco junto com os restos de comida.
O que você vai fazer com isso, Zelador?
Demorou para responder. Acho que estava rezando ou coisa assim.
Jogar em água corrente.
E o pratinho com acaçá?
Ficara por sete dias em cima da firmação do roncó.
Posso me trocar, Zelador?
É ruim ficar nu na frente de um estranho.
Ainda não. Falta o banho de Amacim.
O que é isso?
É um banho de ervas, curtidas no quartilhão do santo. Vá para o banheiro e me espere lá.
Onde é o banheiro?
No segundo salão, porta da esquerda.
O banheiro fedia. E todo o cheiro vinha de um jarro enorme. Acho que o jarro era o quartilhão do santo. Pelo mau cheiro que exalavam, aquelas ervas deviam estar ali pelo menos dez anos. Não demorou muito e o Zelador, com uma vasilha na mão, entrou no banheiro. Enchendo-a no jarro, pude ver como aquele líquido era grudento. Parecia limbo.
Vamos começar, Marcus?
Você tem certeza de que o banho é necessário?
Tenho.
Ele colocou a vasilha sobre a minha cabeça.
No cabelo, Zelador?
Esse banho tem que ser completo. E tem mais, banho com água, você só poderá tomar amanhã.
O mau cheiro acabou nem sendo o pior. Virando várias vezes a vasilha com ervas sobre a minha cabeça, o zelador literalmente me deu um banho. Suas mãos percorreram todo o meu corpo, inclusive nas partes em que não poderiam estar.
Já era noite quando chegamos em casa. Tomei uma ducha no mesmo dia.

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