Capítulo 28

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Acordei com a campainha tocando. Desliguei a TV e fui atender a porta resmungando. Como vou aquecer a pizza sem fogão ou microondas? O Renato é foda!
Como você demorou, cara, Pai?
Seus olhos estavam vermelhos.
Aconteceu alguma coisa com a mamãe?
Ele me abraçou.
Pai, o que foi?
Beatriz acordou.
O que aconteceu, Marcus?
Não sei, meu pai não fala nada.
Beatriz lhe deu um pouco de água.
Aconteceu uma tragédia, Marcus.
Com a mamãe?
Com o movimento da cabeça ele disse que não. Apavorado, corri até a cozinha para ver que horas eram. De lá mesmo gritei para Beatriz:
Uma hora da manhã, Beatriz! Uma hora da manhã!
Voltei em pânico para a sala.
Pai, com o Renato não. Pelo amor de Deus! Pai, o que aconteceu?
Renato nos deixou, filho.
Isso não é verdade, pai. Estamos esperando que ele chegue. Vamos comer pizza, pai. Pai, o senhor não acredita? Olhe pai… Beatriz, pare de chorar…
Ele me abraçou.
Sinto muito, filho.
Tive o peito estourado. Sonhos foram arrancados num só golpe. Como esperança, meu coração dizia que tudo aquilo era mentira. Anestesiado pela imensa dor, não consegui mais falar. Desobedientes, lágrimas insistiram em não aceitar a voz do coração. Rosto em lágrimas. Alma dilacerada. Comecei a chorar em silêncio. Senti o inferno dentro de mim.
Beatriz ficou com a minha mãe. As duas disseram não estarem preparadas para isso. Meu pai e eu seguimos para o prédio da morte.
Pai? Como… isso aconteceu?
Ele capotou com o carro na marginal Pinheiros.
Silêncio.
A que horas foi isso, pai?
Pouco antes das seis horas da manhã, filho.
Completamente atordoado e ainda não querendo acreditar no que estava acontecendo, desci do carro e, abraçado ao meu pai, caminhamos até a entrada principal. Paramos na porta.
Coragem, filho.
Aquele lugar tinha um cheiro horrível de vela. Várias salas no saguão e muita gente na frente das portas me confundiam. Assustado, tentava perceber cada movimento, até que meus olhos estacionaram diante de um quadro-negro. Ver o nome do Renato escrito em letras brancas me fez encostar na parede. Minhas pernas tremiam.
Coragem, filho.
Isso não pode ser verdade, pai.
Força, filho.
Salão 'H', pai. Vamos?
Você não quer se sentar um pouco antes de irmos?
Não, pai. Não.
Aos poucos a porta do salão 'H' foi nos mostrando um clarão de velas. Esse cheiro me derrubou. Mulheres rezavam. Ainda estávamos na porta. Não conseguia ver o caixão. Apenas uma alça dourada. Muitas coroas de flores. Castiçais prateados. Castiçais prateados.
Não façam isso! Ele vai sufocar! Tirem as rosas. Tirem as rosas.
'Pai nosso que estais no céu…'
Calma, filho.
'Santificado seja o vosso nome…'
Pai, diga a eles. Essas rosas cheiram forte. Diga a eles, pai.
'Venha a nós o vosso reino e seja feita a vossa vontade…'
Isso filho. Chore.
'Assim na terra como no céu…'
Pai, não consigo ficar em pé.
Eu estou segurando você.
'O pão nosso de cada dia nos daí hoje…'
Que lugar é esse pai? Devo estar sonhando.
'Perdoai as nossas ofensas, assim como perdoamos a quem nos tenha ofendido…'
Pai, peça para essas mulheres pararem de rezar.
'Não nos deixeis cair em tentação…'
Seu Júlio?
Seu Júlio se abraçou a nós.
Tire o Renato dali, seu Júlio. Aquilo é um caixão. Ele não está morto. Nós vamos comer pizza.
'E livrai-nos do mal, amém.'
Preciso chegar perto. Me ajudem! Minhas pernas não querem andar. Me ajudem!
'Ave Maria cheia de graça…'
Pai, pai, é o Renato que está no caixão! O senhor viu? Não é ele, pai. Todos vocês estão me enganando. Deus! Deus!
'O Senhor é convosco…'
Pai, quero ser enterrado junto com ele.
Me senti perdido. Não sabia o que estava acontecendo. Aquele véu. Aquelas rosas vermelhas. Não conseguia olhar para seu rosto. Toquei suas mãos. Elas estavam frias… meu coração ia explodir… não agüentava aquilo… o que fizera a você? Deus não foi justo!
Carlos, você viu o que fizeram? Você viu…
Chore, filho. Chore.
'Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores…'
Logo estarei com você, cara.
'Agora e na hora da nossa morte, amém.'
Renato, levante daí. É o seu alemãozinho que está aqui. Eu amo você, cara. Eu amo você.
'Pai nosso que estais no céu…'
O nosso apartamento está quase pronto.
'Santificado seja o vosso nome…'
Desmaiei. Jogado na cadeira meu coração queimava mais rápido do que aquelas malditas velas. Me deram alguma coisa para beber. Não sabia o que era, mas queria que fosse veneno. Novamente tudo começou a girar. Me senti leve. Muitos rostos me observavam. Não conseguia ver ninguém. Vultos passavam por mim e alguns flutuavam. O tempo passava muito rápido. Também flutuei. Me vi na cadeira. Meu pai estava ao meu lado e chorava como eu. Queria que parassem de esfregar álcool nos meus pulsos. Um dia antes Renato estava vivo, e então estávamos mortos.
Pai? Pai?
'Venha a nós o vosso reino…'
Estou aqui, filho.
'Seja feita a vossa vontade…'
Não quero mais viver, pai.
'Assim na terra como no céu…'
Pai, será que ele sofreu?
'O pão nosso de cada dia nos daí hoje…'
Não, filho. Foi tudo muito rápido.
Entre o sonho e a realidade, passei toda a madrugada sentado naquela cadeira. Pessoas entravam e saíam a todo momento. Muitos o olhavam por simples curiosidade. Não me agradava vê-lo exposto daquele jeito. Era o meu noivo que estava ali e não um corpo. Gotas de sangue pingavam lentamente por debaixo do caixão.

'… Olhando esse mar todo, sabe do que eu tenho vontade?
De nadar, Renato.
Como você é inteligente, Marcus! A sua sensibilidade é demais, cara. A vontade que eu tenho é de ficar aqui com você para sempre.
Eu topo, Renato!
Como 'eu topo', Marcus? Acho que você já tomou caipirinha demais.
É sério, Renato! Por você eu largo tudo. Estar aqui com você me faz sentir uma pessoa um milhão de vezes melhor. Se não fosse a nossa coragem de enfrentar todas as situações, nossos sentimentos ainda estariam sufocados pela mediocridade das pessoas. Hoje, Renato, eu me sinto vivo! Vamos ver quem chega primeiro na água?
Mas nós nem estamos de calção, Marcus.
E daí? Estamos de short.
O que desceu em você? O Espírito Santo?
Quase isso! Eu estou me sentindo muito bem!
Tentar me derrubar na água deixa você feliz, Marcus?
Você nunca vai saber como é bom estar com você, cara…'

Pai?
Calma, filho. Você estava sonhando.
Ninguém mais estava rezando.
Pai, a mamãe e a Beatriz não vieram?
Não, Marcus. Acho que elas não suportariam ver o Renato desse jeito.
O senhor acredita nisso, pai?
Ele apenas me olhou.
Pai, nunca mais quero ver a Beatriz. Nunca mais.
Carlos se aproximou de nós. Ajoelhado à minha frente, ele disse:
Marcus, está quase na hora, eu…
Abraçados choramos.
Preciso me despedir dele, Carlos.
Choramos.
Calma, Marcus. Você vai se despedir… meu pai está pedindo às pessoas que deixem o salão por alguns minutos… Acho importante você ter um pouco de privacidade com ele. Renato gostaria disso.
Não fale dele como sendo alguém do passado, Carlos.
Aos poucos o salão foi se esvaziando. De portas fechadas, ficamos meu pai, seu Júlio, Carlos e eu. Sozinho me aproximei do caixão e pela última vez pude tocá-lo.
Não sei por que Deus fez isso com a gente, cara… essa vida não presta, Renato. Agora que tudo estava dando certo… sabe, Renato, sei que fiz um monte de besteiras, mas nunca deixei de amar você. O meu amor por você é eterno, e não vai ser essa droga de morte que vai nos separar… eu amo você, cara. Eu amo você… Daqui a pouco vão levar você para longe de mim, mas o que eles não sabem é que o seu coração vai ficar guardado para sempre dentro do meu peito. Nunca mais terei ninguém, cara.
Abismo, escuridão, solidão. Seu peito vertia sangue. Beijei suas mãos, seus lábios, seu rosto… tentei resgatar a vida. Não consegui.
Renato, até que a gente possa se encontrar de novo… vamos escolher a Lua como um elo entre nós… todas as vezes que eu precisar falar muito sério com você, cara, estarei olhando para ela…
Beijava seus lábios quando eles se aproximaram. Nos abraçamos sobre o caixão.
Seu Júlio, o Renato não pode ir assim. Ele tem que levar alguma coisa minha para não se sentir sozinho.
Seus olhos disseram que sim. Tirei minha camiseta e a coloquei embaixo das suas mãos, junto com o terço. Novamente beijei-o nos lábios.
Temos que abrir as portas, Marcus.
Só mais um minuto, pai.
Seu Júlio concordou.
Tchau, cara. Tchau…
As portas se abriram. Muita gente entrou. As mulheres da reza voltaram.
'Ave Maria cheia de graça.
O senhor é convosco.
Bendita sois vós entre as mulheres.
Bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus.
Santa Maria, mãe de Deus,
Rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte.
'Amém'
Ao ouvir que o caixão seria fechado, fui envolvido por uma força muito parecida como a do vento. Meu corpo continuava inerte enquanto minha alma se arrastava pelo chão. As pessoas se movimentavam como em câmara lenta. Gritos, choros, desmaios. Desespero. Empurrado para trás por um sofro de sentimentos descontrolados, me separei do abraço seguro de meu pai. Sozinho e quase fora do salão, acompanhei com os olhos, segundo a segundo, a tampa da morte selar a vida. Duas almas gêmeas foram estraçalhadas naquele instante.

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