Capítulo 9

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Na véspera de Natal acordei cedo. Minha mãe já havia me chamado pelo menos umas cinco vezes. Desci, tomei um banho superdemorado - o chuveiro do banheiro de baixo tem o jato de água mais forte - daqueles que fazem a gente despertar, e fui para a cozinha.
Sobre a mesa encontrei um dos famosos bilhetes da minha mãe, que só serviam para me dar ordens - 'Marcus faça isso, Marcus faça aquilo' - ser filho único nessas horas era muito ruim, pois qualquer atividade especial acabava sempre sobrando para mim.
Das tarefas que ela havia deixado, a principal delas era a de levar a mesa da cozinha para o barracão dos fundos e a pior era a de arrumar o barracão, que quase sua totalidade era ocupado com minhas coisas. Eu sempre fui de guardar coisas velhas e quebradas. Minha mãe dizia que eu havia puxado ao meu avô Francesco, que também era mestre em guardar porcarias.
Com um sanduíche de queijo na mão esquerda e um copo de leite gelado na mão direita, fui para o barracão, quando ouvi meus pais chegando. Devagarinho e sem fazer barulho fui à cozinha para surpreendê-los. Na verdade, eu sempre brincava de dar sustos na minha mãe. Quando cheguei perto da porta, percebi que eles estavam falando de mim e apesar de não ser correto, resolvi ficar ouvindo.
Eles estavam conversando numa boa e meu pai dizia:
Sabe, Ana, eu me sinto cúmplice de tudo isso ao apoiá-lo. E nada disso me faz bem. Mas o que a gente pode fazer? Se nós virarmos as costas, nós vamos deixá-lo sozinho. E isso eu acho pior. Sozinho, ele vai encontrar gente de toda espécie. Algumas pessoas vão querer se aproveitar dele, seja em sexo ou em drogas. Nós sabemos como é o mundo lá fora. Quando você foi consultar a Sílvia, que trabalhou com jovens problemáticos na cidade... Como era mesmo o programa social?
'Vamos tirar os jovens das ruas'
É esse mesmo, Ana. Você lembra que ela falou que meninos na idade do Marcus estavam vendendo o corpo em troca de dinheiro para sobreviver? Sabe, Ana, se alguém tem que passar por algo que não gosta, acho que tem que ser a gente e não ele. Vamos fazer com que as coisas aconteçam com a maior dignidade possível.
Sem fazer barulho, resolvi voltar para o barracão. Me arrependi de ter ouvido esta conversa. Eu não faria nada disso. Comecei a pensar num jeito de mostrar que eu estava lá, mas que nada tinha ouvido. Comecei então a cantar e em poucos minutos eles vieram. Quando os vi, disse:
Vocês já chegaram?
Eles não perceberam nada e minha mãe disse para me apressar, pois logo os convidados chegariam.
À noite, minha casa já estava cheia de gente. Por parte de meu pai, estavam seus três irmãos. Tio Marcello, que era o mais legal deles e também o mais pobre. Ele trabalhava num banco, mas não ocupava nenhum cargo de destaque. Tio Marcello era casado com Isabel, a quem eu também chamada de tia. E tinham duas filhas que eram uma gracinha, Flávia, com sete anos, e Mara, com nove.
Já tio Sandro era do tipo bem sisudo. Ele era contador e tinha escritório próprio. O que eu não gostava nele era o papel de 'senhor sabe-tudo' que ele fazia. Tio Sandro era casado com Marta, que também andava com o nariz em pé. Eles não tinham filhos.
O que tio Sandro tinha de sisudo, sua irmã tinha de simpática. Tia Tela se casou com Miguel quando tinha quarenta e cinco anos de idade e vivia como se o mundo fosse um paraíso. Eles não eram ricos, mas tristeza e coisas ruins não faziam parte da vida dela. Na verdade, eu nunca soube definir minha tia Tela. Às vezes eu a achava inocente de tudo e às vezes tinha a impressão de que ela simplesmente bloqueava aquilo que não queria ver.
Pela família de minha mãe, além dos meus avós, estava a sua única irmã, minha tia Rosa. Era a simplicidade em pessoa. Eu nunca vi minha tia falar mal de alguém. Ela era casada com o tio João, que também era muito legal. Eles eram proprietários de sete lojas de autopeças. O filho deles, Daniel, tinha minha idade e a gente aprontou muito quando crianças.
Eu estava servindo ponche ao meu avô, quando vi os pais do Renato entrando.
Presta atenção, Marcus.
Me desculpe, vô.
Depois de quase ter derramado ponche em cima dele, fui tomado por um calafrio no corpo todo. Percebendo algo de diferente em mim, meu avô perguntou:
Quem são aqueles, Marcus?
Quem, vô?
Aqueles que estão parados na porta do quintal junto com os seus pais?
São os pais do Renato, vô.
E por que a presença deles o deixou tão nervoso?
Eu não estou nervoso, vô.
É lógico que está!
Nisso, Renato veio em minha direção.
E aí, Marcus, tudo bem?
Nos cumprimentamos com um abraço e ao pé do ouvido ele me falou:
Meus pais já estão aqui.
Também encostado ao seu ouvido, eu respondi:
Eu sei, Renato. Já os vi.
Num tom de voz bem alto, meu avô falou.
Vocês vão ficar agarrados por muito tempo?
Sem graça, paramos de nos abraçar e Renato foi finalmente cumprimentá-lo:
Tudo bem, Sr. Francesco?
Eles também se cumprimentaram com um abraço e meu avô perguntou ao Renato:
Por que o Marcus ficou tão nervoso quando viu os seus pais, Renato? Aconteceu alguma coisa?
Ele ficou nervoso, Sr. Francesco?
Ficou.
Intervim na conversa.
Eu não fiquei nervoso, vô. Isso foi impressão sua.
Inteligentemente, Renato puxou outros assuntos com meu avô e enquanto eles conversavam fiquei observando - com um falso sorriso no rosto - os quatro se aproximarem de mim. Minha mãe vinha de braços dados com dona Inês, aparentando uma amizade que não existia. Já bem mais à vontade, meu pai conversava com o senhor Júlio e, pela forma que gesticulavam com as mãos, o assunto era negócios.
Dona Inês, seu Júlio. Tudo bem?
Como sou falso. Fui cumprimentar o senhor Júlio com um aperto de mãos, mas para minha surpresa ele me abraçou. Nosso abraço foi muito curto em função da impaciência que dona Inês demonstrava em querer me cumprimentar. A impressão que ela me passava era a mesma de uma criança numa fila qualquer, que não tinha paciência em esperar a sua vez chegar. Por certo ela era a mais nervosa de todos nós, pois junto com o abraço demasiadamente demorado, ela me beijou diversas vezes no rosto.
Ela ainda me cumprimentava quando meu avô foi se apresentando.
Boa noite. Eu sou o Francesco, pai da Ana e... Essa aqui é minha esposa, Luiza.
Minha avó não estava exatamente no grupo e meu avô, ao tentar delicadamente puxá-la, derramou ponche de vinho tinto na camisa do Renato, que estava ao seu lado.
Ele nem teve tempo de se desculpar com o Renato, pois minha avó, que não gostou muito da forma como ela a havia puxado, falou:
Francesco, olha o que você fez na camisa do moço!
Foi sem querer, Luíza.
Eu sei que foi sem querer.
Se você sabe que foi sem querer, então por que pergunta?
Não fala besteira Francesco. Eu não estou perguntando nada. Eu só estou dizendo para você prestar mais atenção nas coisas que faz.
Eu estou prestando atenção, só que o vinho já caiu, Luíza.
Eu sei que o vinho caiu. Só que agora manchou a camisa do moço.
E você quer que eu faça o quê, Luíza? Troque de camisa com ele?
Não se atreva a tirar a camisa aqui, Francesco.
Duvida?
Por incrível que pareça, foi dona Inês que tentou evitar a discussão entre os meus avós se prolongasse. Ela disse:
Vocês não precisam discutir por causa da camisa. Eu tenho certeza de que o Francisco não fez de propósito.
Sem pensar, meu avô respondeu:
É lógico que eu não fiz de propósito. E o meu nome não é Francisco, é Francesco!
Para que as coisas não ficassem piores, minha mãe entrou na conversa e foi mudando de assunto:
Vocês não querem comer alguma coisa? Eu fiz pimentão com alixe. Está uma delícia.
Dona Inês respondeu:
Não, Ana, obrigada. Fica para a próxima vez. Na verdade nós já temos que ir. O meu outro filho, Carlos, está com a noiva nos esperando, não é Júlio?
É isso mesmo, Inês.
O senhor Júlio e a dona Inês ficaram pouco tempo em casa, mas com certeza o suficiente para uma primeira aproximação.
Passado o sufoco e com a casa cheia de gente, foi possível ficar alguns momentos com Renato no meu quarto, sem que fôssemos notados. Eu nem bem havia fechado a porta e ele me prensou contra a parede.
Como você gosta de me apertar contra a parede, cara.
Por quê, Marcus? Você não gosta?
Eu adoro, cara, ainda mais quando você me pega de surpresa, como agora.
Começamos a nos beijar e, entre um amasso e outro, ele falou:
Eu gostaria de te dar o meu presente de Natal, Marcus.
Então você não se esqueceu do meu presente, Renato!
Como eu posso esquecer o presente da pessoa mais importante da minha vida? A caixinha está no meu bolso, Marcus. Você pega?
Pego.
Eu falei no bolso, e é uma caixinha e não um canudo.
Risos.
Eu sei que é uma caixinha, Renato, mas eu estava com a mão tão perto dele, que não resisti.
Ele havia comprado uma corrente de ouro, mas o detalhe que tornava o presente especial era o pingente: no formato de uma medalhinha, tinha um crucifixo cunhado na frente e a letra 'erre' atrás.
Você gostou, Marcus?
Muito, cara. Você coloca em mim?
Lógico. Essa é a melhor parte.
Junto com a corrente ganhei vários beijos no rosto e no pescoço e então foi a minha vez de presenteá-lo.
Agora é a vez do meu presente, Renato.
Você também guardou no bolso, Marcus?
Sobre o jeans, ele começou a passar a mão em mim.
Não, Renato, o seu presente não está no meio das minhas pernas.
Rimos.
Eu vou pegá-lo no maleiro.
Emocionado, entreguei a caixa a ele:
É seu, cara. Espero que você goste.
O que tem aqui dentro, Marcus? Criptonita?
Comecei a rir e perguntei:
Por que você disse isso? É pelo papel?
Hã, hã.
A caixa estava embrulhada em um papel verde brilhante.
Que legal, Marcus!
Você gostou?
É impossível não gostar. Puta tênis transado, cara!
Entre os importados, eu escolhi o que tinha mais o seu jeito.
Valeu mesmo, Marcus. Agora deixa eu ler o seu cartão.
Não leia agora, Renato.
Por quê?
Leia quando você estiver sozinho.
Você está com vergonha?
Tentei puxar o cartão da mão dele, mas não consegui.
Marcus, se eu não puder ler o cartão agora, não tem graça.
Tá legal, Renato. Você pode ler, mas não vale rir.
Ok, Marcus.
Ele começou a ler o meu cartão em voz alta.
'A bordo de sua vida, me fiz um passageiro eterno.'
Renato, juntos faremos o possível e o impossível para realizarmos os nossos sonhos.

Eu te amo.
Marcus.

Eu nem sei o que lhe dizer, Marcus. O que você me escreveu é bonito demais, cara.
Então não diga nada, apenas me abrace.
Nós estávamos namorando quando bateram à porta:
Marcus? Você está aí?
O que você quer, Mara?
O vovô está procurando você.
Diga a ele que eu já estou descendo.
Olhando para o Renato, falei:
Se bem conheço meu avô, é melhor descermos agora.
Por quê?
Porque senão ele sobe.
Não precisei falar duas vezes.

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