Prólogo - Onde dorme a escuridão

56 5 1
                                    

A lenda conta que um menino chamado Yuri fugiu de casa com o objetivo  de atravessar todo o continente Europeu

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

A lenda conta que um menino chamado Yuri fugiu de casa com o objetivo de atravessar todo o continente Europeu. Ele tinha apenas quinze anos, sem nada na sua mochila a não ser um pacote de biscoito e algumas roupas amassadas. No começo de sua jornada, sem ter onde dormir, Yuri pedia abrigo nas casas dos vilarejos onde passava. Era sempre bem recebido por uma família ou outra para dormir onde fosse possível, num celeiro sobre o feno, num sofá velho e cheio de pulgas, as vezes até em camas quentinhas "como essa".

Certo dia, num vilarejo na Rússia chamado Yantal, Yuri bateu em varias casas diferentes e o repouso lhe foi negado veemente. Era uma má época para dar abrigo a um desconhecido pois um assassino estava a solta e nenhuma família queria se arriscar. Exausto por suas caminhadas Yuri adentrou os portões de um velho cemitério sem vigia e repousou sobre a laje de uma das sepulturas. Não sentia medo pois a morte havia levado todos os seus irmãos na guerra. Passou uma boa noite ali, muito melhor do que em alguns lugares que já o haviam recebido.

Mas desde aquele dia, Yuri não conseguia repouso em mais nenhum lugar. As pessoas o ignoravam pelas ruas. Batiam a porta na cara dele. Corriam assustadas quando o viam em suas portas e se benziam com o sinal da cruz antes de fechar as portas e as cortinas das janelas. Não existia outro lugar para passar a noite que não dentro de cemitérios, mas agora ele sentia medo daquilo, pois achava que o lugar o havia amaldiçoado, mas não tinha escolha. Se você fosse pego dormindo em uma praça, era levado a justiça, e os guardas não patrulhavam os cemitérios a noite. Assim por meses continuou sua viagem naqueles dias estranhos. Havia desistido de pedir abrigo na casa de pessoas, mesmo as mais humildes lhe enxotavam como se ele fosse um cachorro velho, velho e aterrorizante. Mães puxavam seus filhos para perto quando o viam e simplesmente o mandava embora. Trabalhadores empunhavam suas pás e inchadas de forma agressiva perguntando o que ele queria. Os demais apenas corriam, corriam como se ele fosse um leproso andante pronto a lhes contaminar.

Assim por meses Yuri se viu rejeitado da sociedade. O que o mundo estava se tornando afinal que não era possível dar um lugar sobre o teto para dormir uma criança?

Noites depois, arrastando as sandálias gastas pelo chão, Yuri chegara a um pequeno conjunto de casas, o sol já havia se posto e existia apenas o coaxar de sapos e o som dos grilos. Nem mesmo a lua estava visível e só os vaga-lumes guiavam Yuri para que ele não saísse da estrada. Enxergou uma luz se movendo colina abaixo ao longe, certamente alguém com um lampião. Guiou-se por aquela luz, entre as casas de madeira fechadas onde pessoas repousavam. Não podia ousar bater ali, as pessoas estavam muito agressivas com ele quando não assustadas demais para correr. Então o lampião se apagou passando por trás de um barraco e se acendeu bem a sua frente quando uma senhora bem idosa adentrou na vila. Ela parecia ter visto um fantasma quando olhou para Yuri e seus olhos se esbugalharam, mas continuou segurando firme o lampião com o braço esticado mantendo-o longe do corpo.

_O que você quer? – perguntou bruscamente em russo.

_Um lugar para dormir... – disse Yuri, tentando parecer menos perigoso possível com medo que a Senhora lhe ateasse fogo.

A velha piscou vagarosamente uma, duas vezes e virou-se dizendo baixo:

_Venha comigo.

Yuri mal pode conter sua emoção, depois de tanto tempo alguém iria lhe dar um lugar para passar a noite. Isso era ótimo, queria muito agradecer aquela senhora, mas achava que se falasse alguma coisa podia fazer a velha sair correndo. Andou atrás dela quase que hipnotizado pela luz quente do lampião e juntos subiram novamente a colina por onde a velha viera. Lá em cima havia uma pequena capela, nada mais do que isso. Na frente, sobre uma grande estátua representando um santo que Yuri não conhecia, algumas velas estavam acesas. A velha contornou a capela sempre andando no mesmo ritmo, devagar e mancando. Arfava um pouco por conta da subida, Yuri pode sentir em sua respiração.

A velha parou e apontou a frente com o lampião. Yuri ficou surpreso ao ver onde ela o levara. Ali, no plano terreno atrás da capela, haviam umas dez cruzes e pedras demarcando o chão.

_Aqui enterramos nossos mortos! – disse a velha.

_Eu posso dormir aqui? – perguntou Yuri.

_Trouxe-lhe aqui não foi? Descanse e diga a Nora que eu a amava como uma filha!

A expressão da velha não mudava entre assustada e corajosa.

_Desculpe. Quem é Nora senhora?

A velha apontou o dedo da outra mão, riste para um pedaço de chão onde a terra tinha sido remexida recentemente. Yuri foi até a sepultura e se ajoelhou. Ali embaixo estava uma garota chamada Nora, parente da velha, mas não sua filha, mas amada como uma. Yuri virou para a velha, mas ela já estava contornando a capela e voltando ao vilarejo, com aquele mesmo andar lento e decidido, mancando a perna esquerda.

Voltou-se para a sepultura de Nora, agora no escuro e fez o que tinha de ser feito:

_Nora... – sussurrou. – Ela disse que te amava como uma filha. E eu vi verdade nos olhos dela!

Uma voz falou atrás dele.

_Obrigado menino de Yantal

Yuri se virou e viu Nora como um espírito brilhante e desfocado.

_Eu não sou de Yantal... eu sou..

_Sim, você não é mais deste mundo, venha comigo Yuri.

Yuri não sentia medo dessa vez, estava apenas curioso.

_Eu não posso, tenho que atravessar o continente.

_Você não pode Yuri, não tem mais um corpo.

Yuri passou a mão pelo peito e barriga, é claro que tenho um corpo, pensou.

_Se isso lhe faz melhor, o assassino de Yantal foi preso e condenado a morte, você foi a ultima vitima daquele monstro.

_Não... – disse Yuri. Não era possível. Ele estava vivo, estava bem.

_Pense... a quanto tempo você não come ou bebe? Porque não se cansa mais e nem sente o frio? Venha comigo agora Yuri.

_Não... não estou morto. Eu vou atravessar o continente.

O espírito de Nora pareceu suspirar profundamente:

_Adeus Yuri. Obrigado pelo recado de minha tia – disse o espírito antes de sumir.

Dizem que a raiva tomou conta de Yuri. Ele não queria estar morto. Não podia estar morto. Pensou em seu corpo ainda adormecido no cemitério de Yantal, sobre a laje de uma sepultura, com um corte do alto do peito até o umbigo. O sangue escorrendo profanando o solo sagrado do cemitério, pensou em seus pais a quilômetros dali em sua terra natal assolada pela guerra e fome e depois pensou no seu objetivo, o Mar Mediterrâneo, depois o Oceano Atlântico.

Gritou de Terror e aflição, um grito profundo e mais escuro que a noite. E dizem que Yuri ainda caminha para o Oeste, andando durante anoite, descansando durante o dia no lugar reservado aos mortos, catacumbas e cemitérios, dormindo no mesmo lugar onde dorme a escuridão.

Onde dorme a escuridãoOnde histórias criam vida. Descubra agora