3- Quando a noite cai

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Pode parecer completamente estranho, mas já parecia que eu morava em Pinkons há anos. Me sentia totalmente adaptada em meus poucos dez dias ali, adorava acordar e perceber que o único som que havia era do silêncio, o ar tinha uma atmosfera calma, nunca fazia Sol intenso e talvez essa fosse a única parte ruim, eu adorava dias de verão e por aqui parecia sempre ser inverno. Minha rotina se resumia em caminhar pela manhã apenas para sentir a brisa fria, tentar escrever, aliás esse lugar despertava minha imaginação, às vezes dava uma volta pela cidade e voltava antes do fim da tarde.
Passei a observar meu vizinho, todas as noites ele se sentava em um tronco frente à sua casa e começava a ler, resolvi usar esse tempo para escrever, então aproveitava a companhia indireta dele e sentava na varanda com meu notebook. Acho que ele não me via ali ou apenas ignorava minha presença. Eu ficava maravilhada pela forma atenta com que ele lia, parecia imerso no mundo de sua leitura, desejei escrever um livro tão bom a ponto de prender a atenção de alguém como aquele prendia a dele. Quando terminava de ler passava alguns minutos olhando para o céu e então entrava em sua casa. A casa passava o dia inteiro completamente fechada, janelas e cortinas abaixadas, me perguntava se ele tinha um emprego, mas nunca o via saindo pela manhã.

Era véspera de Lua nova e o céu estava completamente escuro, hoje as estrelas haviam se escondido. Quando sai para a varanda ele já estava lá, cabeça abaixada e olhos atentos em seu livro surrado. Me sentei da forma mais silenciosa que consegui no degrau da escadinha que dava acesso a minha varanda. Hoje ele estava absurdamente abatido, a luz de sua lanterna me permitia ver algumas olheiras abaixo de seus olhos, seu semblante era inexpressivo.

- Vai me espionar todas as noites? - perguntou sem tirar os olhos do livro.

Senti meu corpo encolher no susto de ouvir aquela voz rouca soando inesperadamente.

- Eu...eu.. Eh - dei um sorrisinho sem humor - não espiono você.

- Ah! Não? - dessa vez ele colocou os olhos em mim e meu corpo estremeceu sob aquele olhar.

- Claro que não!

- Sugiro que seja mais discreta, não é agradável se sentir observado.

Seu tom não era amigável, mas também não soou rude. Me senti sem palavras para conseguir responder, ele se levantou e quando estava quase entrando em sua casa deu meia volta e me olhou.

- É melhor você entrar, não deve ficar aí sozinha...

- Não são nem oito horas...Eu não tenho medo.

- Pois devia ter.

- Mas não tenho.

- Em breve terá.

Ele falava quase sussurrando, mas por alguma razão isso não me assustava em nada.

- Você não devia entrar só porque estou aqui - me levantei.

- Não estou entrando só porque você está aqui, sua presença não significa nada para mim.

Tentei não demonstrar o quanto suas palavras me incomodaram.

- Então fique, já que minha presença não importa, assim não fico só.

Ele não disse nada.
Voltou para a árvore perto de sua casa e começou a revirar o mato por ali, fez um amontoado de galhos e gravetos e com certa dificuldade, após incontáveis tentativas, acendeu uma fogueira. Pegou um outro tronco e colocou junto à fogueira, assim como o seu e sentou.
Permaneci em pé aonde estava, então ele alternou o olhar entre eu, o tronco ao seu lado e o livro. Aquilo me parecia um convite para sentar, então me aproximei. Era a primeira vez que me aproximava tanto assim de sua casa, o máximo que já tinha ido era no pequeno jardim lateral para regar suas rosas.
Quando sentei ali, perto da fogueira, pela primeira vez tive total visão de seu rosto. Seus cabelos se faziam dourados diante da luz das chamas assim como seus olhos que continuavam no livro. Sua pele era clara e quase desejei tocar para sentir sua textura, apesar do cabelo grande e da barba sem aparar, seus lábios ainda se sobressaíam naquela face. Eram tão vermelhos que destacavam em sua pele pálida, seu nariz era arrebitado de um jeito engraçado e parecia desenhado. Só então tive noção que seu rosto todo parecia milimetricamente desenhado, ele não tinha a beleza que atrairia Hollywood, mas tinha uma beleza que atrairia qualquer um que parasse para observar. Devem ter se passado uns vinte minutos de silêncio intenso até que seu olhar, que antes estava perdido entre as palavras, parou em mim. Senti meus olhos brilharem na expectativa dele dizer algo, mas seus olhos se abaixaram para o livro novamente.

Minha luz particularOnde histórias criam vida. Descubra agora