Capítulo 5

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Coloquei o gravador para gravar as suas palavras, levemente deixei- o sobre a mesa e ela começou a falar:
- Chegou o momento de dividir essa história. Verbalizar, exteriorizar, relembrar, encarar.
Foi assim que a Samanta começou a relatar o seu caso:
- Encarar foi o que eu sempre evitei desde que aconteceu.
Agora mais do que nunca preciso descarregar tudo o que ficou guardado.
Vou embora da cidade, do estado, do país, do continente, literalmente.
Começarei uma vida novinha em folha e sinto a necessidade de desenterrar essa história e deixar ela aqui, onde ela aconteceu, pois espero que na minha nova vida isso fique para trás e não volte a me assombrar.
Já se passaram mais de dois anos o que irei relatar.
Tinha recém completado 18 anos, dividia apartamento com uma amiga numa cidade aqui próxima há um ano e havia conquistado a liberdade que tinha passado minha adolescência sonhando.
Podia sair sem ter horas pra voltar, beber cerveja, fumar cigarro, me divertir sem que meu pai ficasse regulando a minha vida.
Aquilo tudo era incrível e era um momento muito especial de descobertas, inclusive sexual e amorosa.
Não tinha namorado nem vida sexual, porém estava aberta a todas as descobertas que são tão emocionantes nesse momento único que marca o fim da infância e começo da idade adulta.
Era um momento de poucas responsabilidades e muita sorte.
Era época de férias escolares e de faculdade. Meu irmão mais novo tinha ido passar uns dias comigo na cidade.
Como minha família vivia em um sítio numa cidade pequena, quando podia, meu irmão ia passear na minha atual cidade.
Íamos ao cinema, jogávamos videogame, almoçávamos em fast food, coisas triviais nos maiores centros, mas que são especiais para quem mora em cidade com menos de cinco mil habitantes.
Uma noite saí com meus amigos e deixei meu irmão em casa.
Sabia que como anfitriã, deveria ter ficado em casa assistindo filmes com meu irmão, mas, quando temos 18 anos, agimos como se o mundo fosse acabar no dia seguinte, e afinal de contas, teria show cover do Led Zeppelin, meu favorito.
Sentia que meu pai reprovaria minha atitude, mas meu irmão não teria problema sozinho e eu voltaria o quanto antes.
Fui à festa, me diverti, bebi, encontrei um amigo que havia um tempo que não nos víamos, trocamos uns beijos, vi que ali poderia nascer um relacionamento.
Quando estava na hora de ir embora, meu amigo disse que me acompanharia até em casa.
Normalmente ia embora sozinha, pois morava há três quarteirões do bar onde estava.
Era uma rua relativamente movimentada, mas ele insistiu em me acompanhar e vi que não teria problemas, seria ótimo ter a companhia dele, ainda mais do meu futuro namorado, além do que mesmo achando desnecessário, me sentiria mais segura.
Assim que viramos a rua, no primeiro quarteirão, um homem surgiu de uma entrada de garagem recuada escura.
Não o vimos em momento algum antes e quando percebemos ele estava na nossa frente, nos cercando e nos empurrando para parte mais escura da garagem e afastada da rua.
Naquela época, circulava uma noticia de que um homem abordava casais numa região erma da cidade, estuprava a mulher e obrigava o homem a assistir tudo, sem poder fazer nada.
E essa história estava acontecendo comigo e eu não conseguia acreditar. Parecia um filme, eu estava assistindo aquela mocinha prestes a ser abusada e não podia fazer nada.
Tudo parecia se mover em câmera lenta, não havia som em volta, algumas coisas são embaçadas na minha mente e durante aqueles instantes que pareciam eternos, só existiam aquelas pessoas no universo.
O Homem era de altura mediana, acima do peso. Suava excessivamente, estava sem camiseta, pois estava com ela amarrada na cabeça, tampando o rosto.
Tinha uma arma prateada reluzente que usou para nos ameaçar, uma hora ele chegou a esfregá-la no meu rosto dizendo que aquilo não era de brinquedo e que estouraria meus miolos.
Obrigou meu amigo a ficar deitado no chão, com o rosto virado enquanto apontava a arma para minha cabeça.
Falava de forma ofegante, gaguejava e olhava impaciente para os lados.
Eu estava chocada, em pânico e praticamente congelada.
Li que as pessoas tendem a agir em situações de extremo estresse de duas maneiras, tem o grupo que a adrenalina faz com que seu raciocínio fique mais rápido, o que ajuda na sobrevivência e tem o grupo que congela e fica parado sem conseguir tomar nenhuma atitude ou ação.
Eu sou do segundo grupo, o que não sei se me ajudou ou não.
Nesse caso fiquei travada, não chorava, não falava.
Estava em pânico apavorada, mas mesmo assim não conseguia nem demonstrar o horror daquilo tudo que estava acontecendo.
Era um estado quase de resignação, de saber o que estava por vir e nem mesmo lutar pela minha vida e pela minha dignidade.
Então, tudo ficou meio nebuloso e aconteceram coisas que nem sei como explicar.
Tenho imagens do seu membro para fora da calça, sensações de toque forçado no meu corpo, puxando minha blusa até quase rasga-la, me expondo fisicamente e emocionalmente, chacoalhões e solavancos na tentativa de me obrigar a satisfazer suas necessidades, apesar do meu estado quase catatônico.
Não sei quanto tempo durou, tampouco sei dizer o que aconteceu.
Só me lembro dele ter dito para eu ficar calada e não sair de lá pelos próximos dez minutos.
Fiquei parada, me sentindo suja, humilhada e envergonhada.
O meu amigo que eu até tinha me esquecido que estava ali, tinha se levantado assim que ele saiu e estava me balançando praticamente gritando comigo, eu ouvia sua voz, mas não entendia o que ele dizia.
Então... o mundo desabou. Cai no chão, no choro, na raiva, no desespero.
Ele só me abraçava, chorava e pedia desculpas.
Tremia, vomitava e chorava.
Hoje sei que agi terrivelmente mal ao não procurar a policia.
O meu amigo insistiu para irmos para delegacia e registrar ocorrência ou ligar para o 190, iríamos juntos depor.
Imagino que poderia ter evitado mais ataques, alertado mais mulheres, exorcizado meu fantasma.
Mas não, só pensava na minha dor e na minha vergonha e decidi que agiria de forma como se aquilo nunca tivesse acontecido e se por ventura eu me lembrasse, que aquilo seria facilmente superado.
Meu celular tocou, era meu irmão caçula que queria saber se tinha acontecido alguma coisa porque eu não tinha voltado para casa ainda.
Com a voz embargada, disse que estava comendo um lanche na loja de conveniência e que logo voltaria.
Ele disse que tinha terminado de zerar o jogo novo dele e que iria dormir.
Meu amigo continuou tentando me convencer a ligarmos para polícia.
Tenho costume de antecipar as situações e na minha mente, minha situação seria embaraçosa e menosprezada já que não havia concretizado a tal “conjunção carnal”.
Pensava na humilhação que passaria na polícia, no depoimento que teria que dar sem sequer me lembrar dos detalhes importantes.
Pensava que eu tinha agido de forma errada, deixando meu irmão em casa para ir à festa e que de alguma forma aquilo era uma punição.
Acreditava que eu tinha dado a oportunidade para que aquilo acontecesse.
Imaginava minha família e meus amigos me olhando com pena.
De qualquer forma, a culpa era minha.
Mantive minha posição, me levantei e fui para casa do jeito que deu.
Tomei o banho mais longo da minha vida.
Esfreguei todo meu corpo como se quisesse arrancar a pele.
Como se a água pudesse levar para o ralo qualquer resquício da sujeira e humilhação que eu tivesse passado.
Sai do banho com meu plano em mente.
Iria esquecer aquela noite e para isso faria o que fosse necessário, inclusive rejeitando qualquer tipo de envolvimento que o meu amigo pudesse ter comigo, fosse de amizade ou amoroso.
Ele era a lembrança ambulante do que houve naquela noite e também a única testemunha.
Ele ligou insistentemente nos dias seguintes.
Minha amiga que dividia apartamento comigo, estava acostumada com minhas manias e achava que a razão para eu evitar o tal amigo, fosse apenas por antipatia.
Ele apareceu na portaria do prédio, sempre avisava para o porteiro a dizer que eu tinha viajado.
Não sei quantas vezes ele ainda tentou me procurar.
Acabei indo viajar à casa do meu pai depois.
Nunca mais o encontrei.
Comentei com alguns amigos meus, superficialmente a historia e sempre agi como se isso não tivesse me afetado e como se tivesse superado.
Inclusive acreditava nisso.
Nunca nem me passou qualquer possibilidade de dividir isso com a minha família, pois nunca fui muito apegada, raramente dividia problemas e angústias com eles e descartei qualquer possibilidade de revelar algo tão humilhante e degradante.
Hoje, não sei até onde esse episódio me afetou.
Tive relacionamentos, mas sempre tive problemas por conta da minha personalidade instável e desconfiança.
Sexo a maioria das vezes, era coisa de rotina e nem sempre algo prazeroso.
Estou sozinha algum tempo e me considero uma pessoa assexuada, pois não sinto falta, não penso, não dou importância.
Vejo amigas comentando sobre sexo de forma empolgada, mas não compartilho da mesma animação e confesso que acredito que sexo seja super valorizado.
Penso que talvez essa minha visão sobre sexo e confiança nos relacionamentos se consolidou a partir daquele dia, em que fiz um pacto de agir como se tudo estivesse bem comigo mesma.
Portanto, será impossível eu ter um relacionamento saudável e duradouro com quem quer que seja enquanto eu não me perdoar por ter me enganado por tanto tempo.
Eu poderia ter me tratado, ter encarado e ter vivido toda aquela dor, seria a maneira de superar aquela experiência.
Ao contrário, escondi isso de todos e de mim mesma.
Quando optei pelo silêncio, não foi só a mim que traí, mas todas as pessoas que sofreram violência sexual alguma vez na vida.
A pior parte de vivenciar tal abuso, além das marcas emocionais é a solidão de não ter ninguém com quem contar, ninguém que vai entender.
Nós vítimas, vemos abusadores em todos os lugares, mas poucas vezes reconhecemos os olhos das vítimas no meio da multidão, pois todas tendem a tentar esconder por se sentirem envergonhadas.
Nos solidarizamos por relatos na TV, filme, internet, mas não temos ninguém ao lado para nos dar a mão e que saiba exatamente o que você está sentindo.
O abuso sexual além de te humilhar e subjugar, te deixa fraco e solitário.
Você sofre sozinha todas as recordações daquela angústia e não tem palavras que possam aliviar a sensação de sujeira , super-exposição e degradação que você sente.
Como disse no começo, vou começar uma vida nova onde ninguém me conhece e tenho que deixar isso para trás e me perdoar por ter me traído.
Preciso disso para poder confiar nas pessoas e principalmente para poder viver em paz comigo mesma sem me sentir culpada.
É uma dívida que eu tenho com a minha pessoa, preciso aceitar que não foi minha culpa, como a senhora disse.
Virarei a página, vou recomeçar e tentarei ser feliz.
Deixar o passado obscuro para trás sim, mas antes, vou encará-lo bem fundo nos olhos e não ter mais medo do que passou, pois ele não irá mais voltar.
Após a dona Wilma ter relatado o depoimento de Samanta, ela começou a dizer o que ela sentiu ao ouvir as brutalidades que seu ex marido havia feito com a Samanta e que ainda por cima, achava que as suas vítimas gostavam do que ele fazia, ela disse:
- Podia ver, quando me relatava, que seus lábios tremiam, sua boca ficou branca, mas, ela continuou a relatar até o final, pude observar que a medida que ela falava, parecia que estava arrancado uma montanha de seus ombros.
Cada palavra saída da boca desta mulher, me penetrava profundamente em meu peito, sentia a dor dela em cada fibra do meu ser.
Samanta, provavelmente, foi uma das primeiras que ele agrediu.
...Pensei.
Eu então, peguei em sua mão, que estava muito gelada, esfreguei a minha mão na dela e com os olhos também cheios de lágrimas,  disse a Samanta:
- Minha irmã, hoje você deu um passo largo para a sua cura, para a sua liberdade, para o seu vôo rumo à vida de paz, alegria e um futuro brilhante...
Seus olhos brilhavam, dava para ver a confiança que ela estava depositando em nossa ONG e em nossas palavras.
- Quero te pedir uma coisa.
Comecei a falar com muito carinho e respeito por tudo que ela passou:
- Gostaria que se fosse possível, você escreveria uma carta ao seu estuprador e falasse tudo o que você sente e tudo o que tem passado, desde quando o seu mundo parou, por conta da brutalidade imposta a você?
Ela olhou para mim, um pouco assustada, pois, ela nunca tinha pensado nesta possibilidade, mas, deu um pequeno tapa na mesa e disse:
- Eu topo.
Eu então me levantei, peguei um copo de água para ela, juntamente com uma folha em branco e uma caneta preta e entreguei ao ela e após ter tomado a água, começou a escrever, dizendo:
CARTA AO “MEU ESTUPRADOR”

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