Capítulo 1 - Glória

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5:44h, 26 de Setembro de 2132, Sexta-Feira

Mais um sonho com sensação de vertigem. Acordo agarrado no lençol, e ouço minha esposa resmungar algo e se virar para o outro lado na cama. A tênue luz arroxeada passando pela cortina e pela parede de blocos semitransparentes do prédio indica que já está amanhecendo, então decido desligar a porcaria do despertador que funciona quando quer, afinal falta apenas um minuto para ele tocar, e vou ao banheiro me arrumar para o trabalho.

Minha cara está péssima, esse cabelo cor-de-orangotango que sempre detestei está mais assanhado do que nunca, e minhas olheiras parecem indicar que não durmo desde o fim da Guerra da Água. Lavo o rosto amassado, escovo os dentes e finalmente consigo urinar, quando então o computador central do apartamento mostra no monitor do banheiro que meus níveis de metabólitos estão normais, exceto por uma leve hipoglicemia, o que é óbvio, pois ainda não me alimentei.

Termino o banho, me visto com aquela roupa sufocante com gravata de ajuste eletrônico automático (que teima em continuar "ajustada" no nível "forca") e mangas apertadas, que meu chefe exigiu que eu usasse agora que fui promovido, e aviso à minha mulher que estou saindo. Ela resmunga algo vagamente parecido com "Bom trabalho" e cobre o rosto com um travesseiro para fugir da luz solar que entra pelas paredes. Dou um beijo na testa de cada um dos gêmeos e aviso que já está quase na hora da escola.

A geladeira me entrega um copo de leite gelado e espumante com a quantidade certa de café e mel quando detecta que eu entrei na cozinha, e eu preparo um sanduíche de queijo e mortadela. Tomo o leite, mas o monitor da geladeira avisa com números laranja berrantes e piscantes que faltam apenas dois minutos para as sete, ou seja, vou chegar atrasado, provavelmente por ter demorado no banho. Desço o elevador panorâmico com o sanduíche na mão, envolto por um guardanapo.

Chego ao carro, ele se liga e uma voz feminina metálica e meio arranhada diz: – Bom dia, Sr. Paulo! O caminho de sempre para o trabalho?

Respondo afirmativamente e ele segue pelos trilhos magnéticos costumeiros. Enquanto termino o sanduíche com mais calma, tento relaxar observando as araucárias ao redor e o céu levemente nublado. Curitiba se recuperou surpreendentemente bem após a grande Crise Climática e se tornou novamente uma das cidades mais arborizadas do país.

Curtindo a paisagem, me sinto orgulhoso de ter participado da transformação dos arcaicos sistemas de cabos aparentes para uma malha de cabos subterrâneos ocos do sistema de energia da cidade. Muitas cidades desenvolvidas fizeram isso há mais de um século, mas com tantas guerras, epidemias e um caos no clima tudo se deteriorou. Creio que estaríamos bem mais avançados se as últimas décadas tivessem sido de um desenvolvimento contínuo e pacífico.

Saio da cidade e o mar de araucárias se torna ainda mais belo com um horizonte tomado por montanhas verdes enevoadas ao invés dos monótonos prédios branco-leitosos, feitos com blocos translúcidos para economizar energia diurna. A usina de fusão nuclear fica a alguns quilômetros da cidade pelo risco de explosão. Não haveria vazamento radioativo, afinal usamos apenas hidrogênio que se transforma em hélio, uma espécie de Sol em miniatura, ativado por lasers ultra-potentes, mas, mesmo assim, uma falha grave no resfriamento causaria uma explosão enorme capaz de engolir boa parte da metrópole. Nunca pensei muito sobre isso, pois confio em meus colegas do setor de resfriamento e nos equipamentos de ponta usados por eles.

Chego ao estacionamento e subo rapidamente para o meu setor, a sala de monitoramento de distribuição de energia, onde podemos detectar o nível de eficiência e eventuais interrupções em qualquer parte da cidade imediatamente. O diretor administrativo me liberou do registro de ponto desde que me promoveu a gerente de setor pela minha contribuição para a modernização dos cabos, mas ainda me acanho de chegar atrasado, principalmente por precisar dar o exemplo atualmente. Mesmo assim cumprimento a todos pelo caminho e me sento diante da enorme tela do setor como todos os dias do último mês. Verifico se há problemas nos pontos de distribuição, e como está tudo funcionando perfeitamente, relaxo e me distraio conversando amenidades com os colegas.

Eco-ÍrisWhere stories live. Discover now