Eco-Íris

Capítulo 8 - O Idioma de Babel

Maio de 2133

Me sinto melhor adaptado ao Simulador e à rotina extremamente rígida com horários fixos para acordar, tomar banho, fazer as refeições, malhar uma interminável hora inteira por dia, treinar os procedimentos da nave, e trabalhar.

Nos dias de semana sobram pouco mais de duas horas para cuidar do Bone e ter meus momentos de lazer antes de desmaiar de sono.

Bone está aparentemente melancólico com esse período em que ando ausente e ele tem que ficar preso no quarto. Pelo menos na casa de Getúlio ele tinha Flaviano para brincar com ele e muito mais espaço e ar livre. Ensinei ele a fazer as necessidades na saída de lixo no canto da parede, que ele consegue abrir facilmente com a pata ou o focinho, pra não ter que ficar chamando o robô faxineiro e muito menos limpar eu mesmo. O tubo que se liga a essa saída de lixo vai ser depois interligado a um grande sistema de sucção que termina no setor de reciclagem da nave, em no andar mais superior do Simulador, e vai virar adubo.

Falando em Getúlio e Flaviano, a cúpula do Projeto Iris em Kourou nos permite mandar e-mails semanais para nossos contatos mais próximos que "abandonamos na Terra". Esclarecem logo que na viagem real os períodos poderão ser inicialmente mensais e, quando sairmos do Sistema Solar, talvez anuais ou coisa pior, e que tudo será violado pelo computador central (também apelidado de "Iris", por ser, digamos, a "personalidade" da própria nave) e por uma restrita equipe com autorização especial, além, é claro, da cúpula de diretores do projeto, portanto devemos evitar assuntos pessoais alheios e somos completamente proibidos de revelar os detalhes secretos do projeto.

Getúlio, Lúcia e Flaviano vão bem. O ciclone desse ano foi um pouco mais forte do que o normal, mas eles instalaram janelas e portas novas e mais resistentes pouco antes dele se formar, então os danos à casa foram mínimos. Getúlio trocou de emprego, está em uma corretora melhor, Flaviano se mudou para uma escolinha mais perto do emprego do pai para facilitar o transporte e teve alguns problemas de adaptação, mas agora já está acostumado, e Lúcia, segundo seu marido, tem estado irritadiça e distante desde que eu parti, e obviamente Getúlio quer sempre saber se eu imagino o motivo, então preciso desviar desse assunto todas as vezes.

Quero esquecer ela de vez agora que não vou mais voltar para o Brasil e já estou envolvido demais com Regine, detestaria me sentir dividido entre as duas. Regine dorme num quarto do meu bloco, o que facilita bastante os nossos encontros e ao mesmo tempo evita o falatório de pessoas estranhas à Diretoria. Ela pretende manter a discrição por mais algum tempo até a relação se tornar mais firme, mas nos dias de folga temos ido juntos ao cinema e à patinação no gelo, além de esporadicamente explorarmos as outras opções de lazer da nave simulada, que é bem sortida nesse aspecto, segundo diz claramente o manual, para evitar que seus "passageiros" enlouqueçam com o isolamento, como acontecia, por exemplo, nas primeiras viagens a Marte.

Concordei em esperar mais um pouco para tornar nossa relação pública também pelo fato de que um de nossos colegas parece estar interessado nela, e precisamos pensar em como lidar com a situação sem magoá-lo.

Tenho notado que a nave realmente terá pessoas de praticamente todos os países do mundo, e isso traz problemas de adaptação principalmente pelo fato de que nem todos entendem as línguas com mais falantes, como inglês, espanhol ou mandarim, criando o incômodo de conseguir se comunicar com alguns colegas de trabalho ou de dormitório apenas através de gestos, rabiscos na tela do Onitel, ou através de uma terceira língua que nenhum dos envolvidos domina bem. Existem máquinas tradutoras em lugares essenciais, como o hospital e a ponte de pilotagem simulada, mas seria impraticável ter mini-tradutores individuais, e elas raramente capturam com precisão as nuances de gírias e as intenções de nossas frases, sendo incapazes de traduzir ironias e sarcasmos de forma correta.