Capítulo 3 - Adaptação e Abandono

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Início de Novembro

Ainda estou tentando me acostumar com a ideia de perder quase metade do meu corpo. Pior que isso é que Rosana não vem aqui com meus filhos e só raramente consigo falar com eles através do telefone de um dos meus primos, que me visitam regularmente. Getúlio diz que ela deu sumiço na gata e largou Bone na casa dele. Temo pelo que ela possa fazer com os gêmeos, mas não tenho como reagir preso nessa cama de hospital, e Getúlio acha exagero avisar às autoridades por enquanto, e se recusa a buscar meu celular com ela.

As enfermeiras já começaram a me levar de cadeira de rodas para o banheiro do quarto e para uma varanda no final do corredor, mas eu ainda não consegui aprender a manobrar essa coisa sozinho com uma mão só. Também por esse motivo agendaram uma visita do fisioterapeuta do hospital comigo hoje.

A espera por qualquer melhora, ou simplesmente por qualquer mudança, seja familiar ou sobre a minha saúde, é agoniante e extremamente monótona. Não tenho noção de quantas horas fico na varanda observando algumas árvores distantes, e já perdi as contas de quantos dias faz que eu acordei, mas também não me importo em perguntar a data pra ninguém. Tentei ouvir alguns audiobooks e jogar qualquer bobagem no holoprojetor, mas não consigo me concentrar nem ter paciência pra mais nada.

Pensei que socializar e conhecer os outros pacientes pudesse ajudar, mas o refeitório me lembra um presídio e muitos dos meus "colegas" são grosseiros ou inconvenientes, perguntando coisas sobre minha família ou minhas intimidades que eu não gostaria de falar nem comigo mesmo. As sessões individuais com a psicóloga e as sessões de terapia em grupo não têm ajudado para me dar mais energia para superar isso e me esforçar na adaptação.

Passar algumas horas por semana na sala de artes borrando coisas com cores pouco combinantes ajuda a distrair das desgraças, mas passear pela borda da piscina e pela quadra de esportes apenas para olhar os outros se divertindo sem poder fazer mais do que um aceno não ajudam em nada, só me dão mais vontade de acabar com isso. Não tento nenhuma besteira por causa dos meus filhos. O que será que eles vão pensar quando descobrirem que o pai que eles tinham praticamente não existe mais?

***

Quando o fisioterapeuta chega parece ser simpático e me trata com cortesia, mas sem os mimos excessivos de algumas enfermeiras que parecem me ver como uma criança apenas por eu não poder me virar sozinho direito ainda. Conversamos longamente e ele me deu esperanças de melhora da movimentação do braço esquerdo, da incontinência urinária e da potência de ereção, mas afirmou que as dores nos membros provavelmente jamais sumiriam de vez, pois os nervos foram muito afetados. Me explicou inúmeros métodos para tudo isso, mas não consegui gravar direito, nunca fui bom em entender essas coisas, e bater a cabeça depois de uma queda enorme não ajudou muito.

Fui dormir mais tranquilo sabendo que teria que me esforçar bastante, mas que havia esperança de alguma melhora.

Meados de Novembro

Já consigo mover levemente os dedos do braço lesionado! São muitas horas por dia e muita dedicação e força de vontade, que estão dando resultado. Também coloquei um aparelho auditivo externo e as vozes parecem menos abafadas agora. Os últimos exercícios e remédios também melhoraram a retenção de urina e a sensibilidade da pele.

Ainda estou indo semanalmente para uma fonoaudióloga para poder calibrar melhor meu aparelho auditivo de acordo com meu nível anterior de audição e me acostumar com o uso do aparelho em si.

Nunca imaginei antes que coisas simples como se vestir, comer e tomar banho pudessem ficar tão difíceis tendo apenas um braço. Infelizmente não tenho como avaliar como seria calçar os sapatos assim, afinal, não tenho mais onde colocar sapatos. Vou me adaptando aos poucos com as dicas de toda a equipe e já estou fazendo sozinho parte desses processos.

O que mais me dói, muito mais que as dores físicas, é estar sendo afastado dos meus filhos por aquela louca. Eu a suporto há seis anos mesmo que ela se comporte como um zumbi e quando algo horrível acontece comigo ela não tem a dignidade sequer de deixar que meus filhos me visitem. É revoltante! Pensei em me separar, processá-la e pedir a guarda dos filhos na Justiça, mas que juiz daria a guarda pra alguém como eu? Talvez ela tenha seus motivos pra querer se afastar. Talvez não me veja mais como um ponto de apoio e um protetor que a sustente em sua atual fase de grande fragilidade, ou simplesmente pense que eu não sou mais a figura masculina viril pela qual ela se apaixonou. O certo é que agora não tem mais volta.

Quanto à virilidade, tenho testado vários métodos, como anel peniano, injeções e comprimidos. O Dr. Santos diz que eu deveria estar testando tudo com minha esposa (duvido que ela aceitasse a parte da eletroestimulação para acelerar a ejaculação), mas se ela sequer vem me visitar, o jeito é ele me supervisionar. Alguns dias atrás tive um acesso de priapismo que precisou de atendimento emergencial, e desde então virei a sensação da enfermaria e algumas funcionárias sugeriram ao Dr. Santos que as chamassem para me ajudar sempre que necessário. Apesar de isso indicar que não estou em minha melhor forma nesse caso, chega a ser cômico e lisonjeiro ao mesmo tempo. O mais estranho nisso tudo é que algumas vezes tenho a sensação de ejaculação e o sêmen vai parar na bexiga, saindo junto com a urina um tempo depois.

Final de Novembro

Com novos remédios, tratamento e treinamento, melhorei bastante. Já adquiri maior coordenação motora para comer, vestir e tomar banho. Trocaram minha cadeira por uma eletrônica comandada por uma pequena tiara neural. Com a cadeira antiga o máximo que conseguiria fazer seria correr em círculos empurrando com uma só mão.

Getúlio trouxe meu laptop, finalmente, e tenho conversado com os gêmeos quase diariamente pelo holochat, o que me trouxe um alívio muito maior do que todos os milhares de anestésicos que tomei desde o acidente. Quanto ao celular, parece que Rosana jogou na parede em um acesso de fúria. Alguns dias ligo pra marcarmos um horário no holochat e eles dizem que a mãe não vai permitir pois eles precisam fazer a lição de casa. Ela mesma nunca falou comigo pelo celular de Getúlio ou pelo holochat enquanto eu estou aqui no hospital, e nem se dá ao trabalho de inventar uma desculpa.

***

Brunildo me acorda com uma voz embargada e estranha. Me viro na cama para olhá-lo de frente e parece que todos os músculos do meu corpo doem ao mesmo tempo. Penso que preciso tomar ainda mais analgésicos por dia pra suportar isso. Estranho seus olhos inchados e o fato de ele estar com um terno preto bem diferente de seu estilo comum. Ele me ajuda a ajeitar o travesseiro e eu apenas olho intrigado enquanto ele tenta começar a falar.

- Paulo, tenho que te contar algo sobre as crianças... Elas... Sofreram um acidente de carro quando Rosana as levava pro colégio hoje cedo...

- Como é possível? O carro se autodirige! Foi algum problema com os trilhos magnéticos? As crianças estão bem? Se feriram?

- Bem, é que... Os peritos disseram que o piloto automático foi desligado por Rosana alguns segundos antes do acidente. Elas não estão bem, Paulo... O carro foi jogado contra um caminhão e... Todos três se foram... Quase não sobrou nada...

Enxergo apenas uma grande mancha vermelha à frente de meus olhos. Me sinto tonto e instintivamente mudo de posição para não cair de lado. A garganta aperta tão forte que perco o fôlego. Meu coração agiu como se fosse parar por três vezes seguidas e então saltou para o pescoço em ribombares violentos. Começo a enxergar o teto branco com a luz ofuscante acima de mim e ouço alguns murmúrios do meu lado, mas não sei o que estavam dizendo e nem me importo. Não consigo me importar sequer com as dores e a falta de minhas pernas agora que perdi algo muito mais precioso. Se houvesse um modo, eu seria capaz de dar o meu único braço saudável para estar com eles de novo, vê-los crescerem e se tornarem adultos felizes. Queria ter estado com eles no momento e impedido essa tragédia.

Sinto que alguém sacode meus ombros e grita, mas nem tento responder ou virar o rosto e olhar em direção à voz. Nada mais importa.


Eco-ÍrisWhere stories live. Discover now